Categoria: Escrita

  • O mundo de Gehenah

    O mundo de Gehenah

    Artigo publicado originalmente na revista “R.I.P. Read in Peace” nº 07 em Setembro de 2011

    Gehenna (Grego γέεννα), Gehinnom (Hebraico Rabínico: גהנום/גהנם) e Yiddish Gehinnam, são termos derivados de um local fora da antiga Jerusalém conhecido na Bíblia dos Hebreus como o Vale do Filho de Hinnom (Hebraico: גֵיא בֶן־הִנֹּם ou גיא בן-הינום); um dos dois principais vales circundando a Velha cidade.

    * Traduzido do original em http://en.wikipedia.org/wiki/Gehenna

    Muitas vezes me perguntei como eram criados os mundos de fantasia, talvez você também tenha feito essa pergunta, seja para outros gêneros literários, como o de ficção científica, o consagrado “medieval fantástico”, ou até mesmo o “cyber punk”.

    Eu era apenas um garoto nessa época e não sabia da missa a metade. Acreditava que era fruto de genialidade e tudo resultado de uma tarefa Hercúlea, o que mostra que eu estava com os pensamentos no caminho certo.

    Não fui preciso quanto à genialidade. Mas se tratando da tarefa, malditas palavras, podiam ter me enganado um pouco mais: Hercúleo é pouco. Como falamos de esforço de divindades gregas, cabe aqui mencionar Atlas, o mesmo que carrega o mundo em suas costas.

    Percebi com o tempo que escrever demandava, em primeiro plano, duas coisas que eu não tive sorte de ter como talentos naturais, esforço e disciplina. Criatividade? É um artigo supervalorizado, mas sem o qual nada acontece.

    Nada em minha vida é fruto de milagre, não sei se isso é uma benção ou maldição (depende do ponto de vista), mas aprendi com essa conclusão que eu precisava dominar a arte da lapidação de rochas, aparando cada aresta de forma precisa para que verdadeiras joias surgissem e, a primeira joia a lapidar era meu esforço e minha disciplina.

    A essa altura talvez você pergunte “e eu com isso?” ou mesmo “que cacete é Gehenah então?”, e para isso eu peço calma, um pouco mais de floreio me é permitido quando os caracteres não estão limitados a conta gotas.

    Com esse intuito, o de lapidar meu esforço e disciplina, em uma bela noite de insônia eu abri o laptop, carreguei a página do Axis Draco e acessei sua interface administrativa por treino e costume. Não tinha muitas ideias em mente e logo escolhi uma imagem em meus arquivos, escrevi um título para uma nova postagem e encarei aquela tela em branco com linhas a me aguardar.

    Provavelmente demorou mais de quinze minutos entre um zapear e outro na mente até que eu percebi que ainda não tinha escrito uma letra sequer.  Pensei em escrever conto para um de meus mundos, alternei o foco entre cada um deles, mas nada conseguia ser produzido.

    Falo de mundos, pois criei vários, talvez até mais do que seria sadio para uma pessoa, se é que existe esse limite. Com o passar do tempo percebi que vários deles eram um só, mas em tempos diferentes ou em uma geografia distante. Foi a minha fase de aglutinação, onde de quatro ou cinco, sobrava apenas um novo mundo de maior complexidade e beleza.

    Gehenah não foi assim.

    Encarava aquela tela com uma sensação quase claustrofóbica, passei pela raiva, esbocei algumas linhas com um objetivo e nada. Minha disciplina nesse momento estava em permanecer ali até que algo surgisse, um milagre acontecesse.

    Lembram o que eu disse antes sobre milagres em minha vida? Exatamente, não aconteceu. Eu simplesmente apaguei a imagem, o título e todas as intenções de escrever qualquer coisa. Posso dizer que alcancei um estado zen, ou talvez sem: sem criatividade, sem método nem alternativas.

    Respirei fundo e comecei a digitar, os dedos tocavam as teclas e as primeiras letras apareceram, seguiram formando palavras e períodos a esmo, sem um direcionamento ou mesmo foco, apenas um exercício quase inconsciente de não pensar com a mente, mas sim esvaziando um reservatório que eu nunca tinha acessado.

    Pouco mais de uma hora depois o ponto final é dado. Percebo o que fiz e não consigo acreditar em um primeiro momento, é estranho demais para ser verdade, parece até um milagre.

    No entanto aconteceu.  Não um milagre, mas assim nasceu o conto “Cutelo de Prata e a questão de Dandara” em um mundo não criado, não pensado ou concebido anteriormente, sem regras ou mesmo delimitações. Cada linha escrita foi dando forma a esse lugar, a essa realidade sem que fosse o objetivo. O conto foi recortado e colado em um arquivo de Word, salvo e engavetado.

    Parece estranho, mas muitos contos acontecem assim, sem querer, mais bizarro nesse momento foi a ausência de vontade de escrever um, apenas a vontade de escrever. Certamente você pode pensar que ainda mais bizarro é enterrar algo para que possa florescer, descansar e encorpar. E não, não estamos falando de bebidas que demandam envelhecimento.

    E Gehenah? Estamos quase lá, aproveite a paisagem antes de chegar ao destino, às vezes ela vale muito mais a pena.

    Algum tempo depois a Editora Estronho anunciou a antologia VII Demônios, não apenas uma antologia, mas sete. Cada uma inspirada em um dos pecados capitais descritos originalmente por Evágrio de Ponto, um monge cristão, depois modificados pelo Papa Gregório I e por fim consagrados por São Tomás de Aquino na forma que conhecemos.

    A estes mesmos pecados foram posteriormente “presenteados” sete demônios por Peter Binsfeld, um demonologista e padre medieval. De posse dessas informações que já eram de meu conhecimento, li a proposta da Editora com essas antologias e tive uma daquelas fantásticas ideias de jerico. Não, não é Jericó, a cidade cujas muralhas foram destruídas pelas trombetas de um anjo, mas sim o dito popular que empresta nome ao asno, ou jumento.

    Sim, a concepção foi a de escrever para cada uma dessas antologias, anunciadas com o mínimo de dez mil caracteres e o máximo de vinte e quatro mil, totalizavam de setenta a cento e sessenta e oito mil caracteres que seriam trabalhados.

    Tudo bem, sete contos não matam ninguém. Mas e a visão foi apenas essa? Não, para engrossar o caldo resolvi que seriam sete contos em um mesmo mundo, dessa vez um novo, criado exclusivamente para abarcar esta heptaempreitada. Como tempero, pois pimenta no olho dos outros é refresco, todos eles deveriam estar interligados, com referências um aos outros sem que no entanto fosse necessário a leitura de outro conto para a compreensão de algum deles.

    Pois é, tal qual uma ideia de jerico, ela era amalucada, e do jerico (o asno) eu tive que extrair seus dois atributos mais importantes: teimosia e força.

    E assim começa de fato a gênese de Gehenah.

    Quando inicie os preparativos para essa jornada da escrita, separei uma dúzia de links e mais de dez livros, todos como referência, auxílio e apoio para o processo bizarro que é costumeiramente chamado de “wordlbuilding”.

    Mas o que é o Worldbuilding?

    Seguindo sua tradução ao pé da letra, é a construção de um mundo, de suas características, história, vida, fauna, geografia entre as muitas outras necessidades que surgem com essa tentativa.

    É ainda, toda a estrutura criada de forma objetiva para possibilitar uma narrativa cujas informações não sejam conflitantes dentro do que quer que você escreva. Sem que a princesa comece a história com olhos verdes e termine com eles azuis, ou mesmo uma viagem que alguém demorou vinte dias a cavalo, seja feita em uma semana a pé.

    Worldbuilding é uma preocupação especial com o pano de fundo da história, seja ela criada unicamente baseada em conceitos abstratos ou mesmo inspirada em uma geografia certa, ou um período histórico. Essa preocupação pode ser intensa e muitas vezes toma mais tempo para ser produzida que de fato a escrita.

    Novamente estava diante do notebook portando apenas vontade, mas sem ideias para tocá-la adiante. Foi o momento de agir como um coveiro e desenterrar o “Cutelo de Prata”. Lá estava o mundo que eu iria utilizar para cada um dos contos, para cada uma dessas amalucadas tentativas de conseguir publicar meus escritos. Mas se você se lembra do que eu escrevi anteriormente, era apenas um conto, não a descrição precisa de um mundo.

    Portado de vontade e disciplina, chegara o momento de fazer valer o esforço. Comecei a enumerar fatores que pudessem me ajudar a construir tal mundo, fossem eles literários, gráficos, musicais, cinematográficos ou de qualquer outro meio de expressão artística. Acreditem, deu trabalho.

    O primeiro passo foi reler aquele o já escrito e perceber que ele realmente não era um milagre. Estava truncado, mal escrito, falho e em muitas vezes incompreensível. Percebi que ele fazia referências demais a coisas do mundo que ainda não tinham sido criadas, logo, eu precisava criá-las primeiro para poder arrumar aquela bagunça toda.

    O segundo passo foi ser honesto comigo, perguntar o que eu queria escrever, como seria feito e qual era a carga desejada para essa construção. Responder a isso abriu as portas certas e conseguiu direcionar minhas pesquisas, estudos e leituras.

    A primeira referência a surgir foi a série televisiva Supernatural, de onde eu já extraíra um conceito (unindo-o a outros) para criar uma arma descrita no conto Oricvolver. Dessa vez o que extraí foi a atmosfera sobrenatural, um mundo onde coisas estranhas acontecem frequentemente e quase sempre não são para o bem da humanidade.

    Pela saga dos irmãos Winchester consegui vencer algumas amarradas de apresentar demônios dessa ou daquela forma, eram certos limites com a “fôrma” consagrada pelos estudos pelo assunto feitos por quase duas décadas de minha vida. Desapego foi a palavra correta para aquele momento

    Considerei boa a referência, mas vazia e vaga. Embora a série tenha seus momentos altos, no geral ela cai no lugar comum de uma história que não pode ser explorada a fundo, apenas no decorrer de uma temporada inteira podemos ver as reais tramas, chegara o momento de procurar algo mais sólido.

    A referência seguinte foi literária, nada mais que o mestre Howard Phillips Lovecraft (e se você somente o reconheceu pelo sobrenome, tome vergonha na cara e vá ler uma de suas obras). Reli Azathoth, The Colour Out of Space, Under the Pyramids e tantos outros contos dos quais absorvi a criação atmosférica, a descrição, mesmo que velada,  de entidades cósmicas supranaturais e, claro, o terror.

    Não desejava dar a tônica única do Terror nos sete contos, mas conforme o mundo no qual eles se ambientavam era construído tornou-se inegável a constatação desse fator  ser a constante e não uma variável. Como seria diferente se aos poucos eu via que cada lugar era se não mais, tão inóspito quanto o anterior? E segui reunindo os fragmentos para essa construção.

    A terceira referência foi uma música, apenas uma canção de Marilyn Manson de nome “Four Rusted Horses” cujo título que me fez indagar sobre como seria um mundo no qual os cavalos, dos quatro cavaleiros do apocalipse, estivessem enferrujados. Afinal, o que teria feito com que eles estivessem ali largados ao sabor do tempo?

    Entendam, a referência musical sozinha embora seja bela e tenha em sua si o clima perfeito, não fez muita coisa, ela serviu apenas como base para uma indagação que me fez sacar a bíblia e reler Apocalipse 6: 2-8. Entendi que eu estava falando de um lugar onde o juízo final já tinha acontecido e nele não restaram histórias felizes para contar.

    De posse dessas três referências eu já tinha um esqueleto, uma armação inicial onde poderia começar a colocar penduricalhos e a traçar linhas de conexão entre eles, criando assim a estrutura necessária para dar lógica ao conto do Cutelo de Prata. Logo em seguida eu o reescrevi e tudo começou a fazer mais sentido.

    Casa arrumada. Vamos aos próximos detalhes. Mais e mais referências, mais e mais inspirações. Quando reli o Cutelo na mesma hora me lembrei de um conto (do escritor Jacques Barcia) lido pouco tempo antes, “Salvaging Gods” publicado na Clarkesworld Magazine e percebi nele a atmosfera New Weird com a qual o Cutelo reverberava. Aquele lugar com fatos que aos nossos olhos seriam surreais, mas que faziam completo senso para seus personagens.

    Reli “Salvaging Gods” e com isso ficou claro que o ambiente rascunhando era dotado de suas próprias leis e regras, muitas vezes, diferentes das com as quais vivemos. Tomar ciência das duas próximas referências aconteceu naturalmente, eram uma sequencia lógica. O filme “O Livro de Eli”, onde um peregrino faz sua jornada por um mundo pós-apocalíptico totalmente distópico com um propósito inquebrantável e o jogo Fallout, ambientado em outro lugar onde nada de bom pode acontecer após uma guerra nuclear.

    Do livro de Eli eu fiz rapidamente um pulo para Waterworld e Mad Max. Três mundos cinematográficos explorados com seus méritos e deméritos, onde a expressão “desolação” fazia todo sentido ao se analisar a população ou mesmo o cenário.

    Eram muitas referências, tantas que eu estava perdido e para me achar eu tive que dar um passo de fé e afundar nesse abismo da dispersão. Juntar mitologia greco-romana, hindu, nórdica, celto-druídica, à cristã com sua escatologia? Oh yeah baby, é disso que eu estava falando!

    Os sete demônios seriam reais, não apenas uma construção psicológica ou imagética que ganhou força, mas sim uma releitura de vários textos clássicos do cristianismo ou do judaísmo sefardita que transformava pesadelos em uma realidade com a qual seria necessário conviver.

    Com o fato dos demônios definido chegava o momento de ajustar a cosmologia e cosmogonia. Não confundir as duas, por favor, enquanto a “gonia” define a origem do universo através de seus mitos, em mundos fantásticos a “logia” abrange a descrição do mesmo, especialmente quando está em questão esquemas de planos e dimensões.

    A esses dois fatores eu tive de adicionar um terceiro de mesma importância, a teogonia. O prefixo “teo” refere-se a deuses e por consequência o que eu tive de esboçar foi a origem das divindades, demônios, entidades e demais criaturas que faziam parte daquele esquema cósmico.

    Se você lembra que eu falei de juntar um monte de mitologia no mesmo caldeirão, deve perceber que nesse passo eu tive de lidar com muitos problemas, entre eles o principal sendo o da hierarquia, afinal, qual mitologia (ou religião, se você assim preferir) seria a correta e verdadeira? Eu tive de criar uma nova.

    Não, não é algo a se pregar por aí nem a ser dito em voz alta pois o risco de parecer um louco é iminente, mas com a estrutura de religião somada à teogonia, cosmologia e cosmogonia, consegui fechar todos os detalhes necessários para dizer que o mundo enfim funcionaria de forma redonda.

    Mais uma vez, não. Não pense que debrucei sobre cada mitologia e religião pesquisando indefinidamente e amarrando todas as pontas que ficavam soltas nessa colcha de retalhos, o que fiz foi definir uma escala de acontecimentos e importâncias, conexões entre mitos e formas pelo qual o sincretismo ocorreria. Acreditem, sincretismo é uma forma bem eficiente de se lidar com mitos nessas situações. Logo, não esperem um trabalho de teologia que vá apresentar uma verdade inexorável.

    E assim eu retornei para a origem da ideia, os sete demônios e toda a gênese judaico-cristã eram o que faltava para dar o último toque acre a esse prato. Só faltava então começar a escrever os contos? Não, nomear esse mundo ainda era uma necessidade.

    De forma similar a uma gestação, não o nomeei enquanto não veio à luz, apenas tive formulações de nomes, listas enormes de variações e concepções que podiam ser escolhidas quando enfim ele desse seu primeiro berro.

    E sim, agora só faltava escrever cada um dos seis contos que restaram e o ponto de partida de todos eles foi o Cutelo. Grande Cutelo, sujeito simples, aquele cara que não pensa muito, não tem grandes ambições e simplesmente continua sua vida com a simplicidade de um dia após o outro.

    Tracei o plano para os contos, risquei algumas informações básicas sobre o mundo apenas para ter como ponto de partida e com tudo em mente escrevi as primeiras linhas do último conto, “Lady Hiroshima, a Gênese”. Não foi por tentativa de fazer ser poético que o último fosse na verdade o primeiro, mas sim o desejo de que ele fosse o último ato onde a palavra IRA, pecado que ele carregaria, fosse expressa da melhor forma que eu pudesse conceber.

    Após essas primeiras linhas veio ao mundo “O obsessor no caminho ígneo do Bodisatva”, seguido de “Banquete de maná e oração à unificação”. Os dois foram escritos quase de forma paralela e neles foram utilizados pela primeira vez os preceitos do mundo ainda sem nome:

    1. Não seria um mundo legal de se viver.
    2. O apocalipse não apenas já aconteceu, mas também trouxe consigo coisa pior;
    3. O mundo dos demônios fundiu-se com o a Terra mudando-a completamente e incluindo nisso a Mortalha que cobre o Sol.
    4. Maniqueísmo é regra inicial, o bem perdeu a batalha e o mal impera através dos sete demônios que controlam o mundo.
    5. Tecnologias foram perdidas e a magia ressurgiu com força para dar algum alívio à humanidade (e mais poder aos demônios).
    6. Outras tecnologias foram criadas em comunhão com a magia fazendo com que o paradigma de realidade mudasse.
    7. O Inferno apenas começou…

    Com esses preceitos, os dois contos foram concluídos e entregues, personagens criados começaram a mostrar sua verdadeira voz e eu pude descansar por algum tempo já que em seguida teria de entregar o Cutelo, e ele já estava quase pronto.

    Trabalhei então outros aspectos do mundo, descrevi melhor algumas situações e fatos que serviriam de base para os próximos contos e justificariam o que foi escrito nos anteriores e então dei mais retoques no que texto seria enviado para Ira.

    Após as últimas marteladas, finalizei “Cutelo de Prata e a questão de Dandara” eu pulei para “Axis Mundi, a herança de Simha”, ciente de que parte importante da mitologia construída estava sendo escrita de forma objetiva e concreta, eliminando a possibilidade de mudar por qualquer motivo.

    Funcionou bem, algumas ideias tidas no meio do caminho se saíram ainda melhor do que eu imaginava e os poucos buracos encontrados na estrutura do mundo foram preenchidos quando tomei coragem e decidi que mesmo que, a ideia daquele no momento não fosse a mais agradável, era perfeita.

    Estavam vencidos Inveja, Gula, Luxúria e Soberba e talvez esses anúncios tenham me feito entrar na atmosfera do que viria a seguir: Preguiça.

    Procrastinar, a desculpa da maioria dos escritores é na realidade parte integrante da religião universal de escrever, que aguarda o acontecimento da conjunção planetária propícia  junto ao  ritmo telúrico correto para que algo seja esboçado.

    E mais alguns golpes foram dados nas pedras. Lapidando as características necessárias do escritor e fazendo com que então nascesse “Bastardos, duas gatas e um V8 fumegante” como uma real vitória sobre a Preguiça e a compreensão sobre a justa medida do que é esforço.

    Quando menos percebi, eu já estava de frente ao sexto demônio, as trilhas sonoras dos outros contos já tinham sido formadas em minha mente e eu olhei novamente para essas referências, ouvi “Opening The Gates of Hell” de Wumpscut e sabia que o mundo sem nome já se movia sozinho, absorvendo as referências de forma automática sem que eu sequer percebesse, agindo exatamente como um buraco negro fazia. Ora, estava bem próximo da Avareza.

    Esquecer de Therion? Um erro explicável. A maioria dos álbuns lançados desde Theli tem seu lugar cativo no meu dia a dia, no meu imaginário padrão e automático, logo não é estranho que eu visse tanto de tantas músicas expressadas em cada um dos contos e das características do mundo. Era mais uma referência a ser colecionada e catalogada, mas esboçá-la aqui criaria um sem número de páginas que inviabilizaria sua publicação.

    A coleção estava enorme e me perder nela se tornara fácil, logo, decidi que as referências teriam de ser concluídas. Antes que eu resolvesse dar fim à temporada de inspirações me lembrei de Sucker Punch, de filmes de Wu-Xia e outras maravilhas cinematográficas com cegos obstinados, com mulheres de verdadeira força e só então as referências (ao menos conscientes) estavam encerradas.

    Com o nascimento de “Segredos sob a égide de Mercúrio” tudo estava funcionando plenamente, sem que fosse necessária mais nenhuma incursão nessa realidade para entender “como as coisas funcionam”, meu papel de Demiurgo já estava definido e sagrado.

    Faltava apenas um demônio, apenas um pecado e apenas um conto. O mesmo que eu iniciara quando o conceito para as sete antologias surgiu, aquele mesmo que eu trabalhara lentamente a cada pausa de deadline, com calma, dedicação, esforço e disciplina. Era a última joia da coroa, um diamante de fogo que eu cultivara e por fim chegava a hora de ceifa-lo.

    Fiquei feliz e triste.

    O sétimo conto foi aprovado, todas as deadlines e seus demônios foram vencidos, mas percebi que aquilo apenas criara um espaço vazio em meu interior. Faltava algo importante sem o qual eu não me daria por satisfeito: um nome.

    Como descrevi acima, o processo de worldbuilding não foi feito de forma exclusiva e isolada, em muitas das vezes nem mesmo intencional. Ele aconteceu de forma orgânica e natural, como resultado de uma ideia de jerico, animal tão desprezado que me emprestou suas forças e teimosia para martelar incansavelmente a muralha até ceder. 

    Ora, um nome? O que não faltavam eram nomes. Foi só me lembrar do “Exorcismo de Emily Rose”, quando o padre pergunta à entidade dentro dela qual é seu nome e ela responde:

    “Names? Names? One, two, three, four, five, six!”

    Só então o sacerdote toma ciência do que está enfrentando e faz a pergunta certa:

    “Ancient serpents, depart from this servant of God! Tell me your six names!”

    Eu estava na mesma situação, mas ao invés de seis, eu lidava com sete demônios. Criaturas que eu chamei de “Gregoraquinianos” sintetizando o Papa Gregório e São Tomás de Aquino. Sete entidades malditas que transformaram o mundo em um lugar de desolação, destruição, amargura, profanação viva. Onde o fogo nunca se apagava.

    O fogo que nunca se apaga, mencionado em Marcos 9:44-48.  E então em Mateus 10:28 dele veio a resposta a esse nome:

    “Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode precipitar a alma e o corpo na Geena.”

    Encarei os sete demônios e eles me encararam de volta, seus sete nomes me foram ditos como se fossem soprados pelas serpentes ancestrais e eis que os sete nomes quando vertidos em letra se mostraram: GEHENAH!

    Um local de pesadelos onde de fato a morte do corpo não é o pior dos temores, mas sim o descanso que alma alguma pode conquistar.

    Um lugar onde o fogo que nunca se apaga está tão espalhado pela Terra incinerando a fé e a esperança que ninguém ousa sonhar.

    Um inferno onde as pessoas desaprenderam a olhar para o alto em busca do fulgor do Sol, pois o mesmo encontra-se encoberto pela enorme Mortalha que transforma os dias ensolarados em eternas tardes cinzentas.

    Um mundo onde eu jamais ousaria colocar o pé, principalmente por ter sido juiz e carrasco de tamanha realidade terrível. Assim, o abismo olhou de volta para mim e sussurrou suas palavras, percebi que muito ainda teria de ser feito, pois, de fato, o inferno apenas começara…

  • Lady Hiroshima, a Gênese

    Lady Hiroshima, a Gênese

    (ira)

    Sete milhas ficaram para trás em um rastro de poeira e marcas de pneu na terra. Dentro do V8 amarelo com faixas pretas verticais acelerando em direção à tempestade, três pessoas viajavam concentradas em seus assuntos, em silêncio.

    A motorista, de cabelo loiro e olhos laranja, baixa e magrinha, era Mustang, uma xamã dos V8, capaz de conjurar espíritos e fazer com que aquelas máquinas sagradas se movessem sob seu controle. Em uma era onde o conhecimento de motores era raro e os combustíveis ineficientes, apenas os xamãs conseguiam fazer com que tais veículos se movessem.

    Ao seu lado, Sabazius Mão de Bronze. Um homem com pouco mais de 1,80m de altura, careca, pele jambo e olhos azuis. Mal vestido, não aparentava a importância que tinha, segundo na cadeia de comando de Motora, a cidade de onde partiam. Sua mão direita, coberta de símbolos mágicos, parecia estar com uma luva metálica o tempo todo, da cor escura que lhe apelidava.

    Sentada no banco de trás, uma mulher oriental. De pensamentos agitados sobre o irmão desaparecido tantas décadas atrás, refletia sobre a pista que surgira, mas suas esperanças não eram boas já que a notícia de forma alguma era animadora.

    Seu nome, Lady Hiroshima, uma mulher não-nascida. Não como homens e mulheres nascem há tantos milênios. Quando o poder do átomo foi liberado pelo homem em 1945, a barreira entre dimensões foi abalada. Menos de um mês depois foi a vez de utilizar tal poder para destruir vidas, vencer guerras e dar aos homens o prazer de brincar de engenheiros da realidade. Um “Pequeno Rapaz” explodiu revelando a verdadeira face daquilo que podia acabar de vez com o mundo.

    No ponto zero dessa explosão a realidade fora quebrada por uma fração de segundo. Tamanho fluxo de energia fez com que uma criança surgisse, como se a própria radiação liberada por aquele artefato bélico tomasse forma e consciência na geração espontânea de vida. Imune ao inverno nuclear, ela foi a única testemunha da dor sentida pelas vidas ceifadas naquele dia, uma única vida surgida da morte de milhares.

    A mesma cerimônia macabra se repetiu após alguns dias, não muito distante. Dela nasceu o garoto que Lady Hiroshima tomara por irmão, Nagasaki. Ambos vieram ao mundo em corpos de criança com poucos meses de vida e, embora não pudessem falar, seus pensamentos eram o de almas antigas mas sem memórias.

     Encontradas pelo doutor Tannhauser, as crianças foram levadas para as instalações secretas de uma dissidência do Projeto Manhattan, onde sofreram toda sorte de exames possíveis. Não estavam preocupados com a geração espontânea de vida por desconhecerem esse fato, queriam descobrir como elas conseguiram sobreviver à explosão, como não dependiam de alimentação e como a pele deles podia ser tão resistente e ainda assim flexível.

    Com o tempo passaram a pesquisar por qual motivo elas emitiam continuamente radiação. Graças aos métodos cruéis, sofreram por muitos anos, até que alcançassem a auto-suficiência através do desenvolvimento de seus corpos, marcados pelas retiradas de amostras.

    Quinze anos se passaram quando um dos laboratórios explodiu pelo despertar de poderes latentes da menina. Escaparam meio a aquela confusão e se esconderam por alguns anos no qual viveram em paz. Quando souberam que estavam sendo caçados pelos soldados do Projeto Manhattan, passaram a se mudar. Por quase vinte anos eles não descansaram.

    Décadas após, quando o mundo entrou em colapso graças à dissipação total da barreira que separava a Terra e o Inferno, os dois irmãos se juntaram novamente aos homens para lhes dar esperança e protegê-los dos desmandes dos Sete Senhores do Inferno. Seus corpos não envelheciam desde os vinte anos, mas eram mais inteligentes que os outros humanos. Essa inteligência foi a peça fundamental para convencer aquelas pessoas a reagirem e a não deixarem-se tomar pelo desespero. Estava fundada Motora, a cidade que permitiu a muitos homens sobreviver naqueles tempos inóspitos.

    Nagasaki, nos anos que precederam seu desaparecimento, passara a ter pesadelos perturbadores. Dizia que sua alma era formada pela amálgama dos milhões que morreram no seu nascimento e que, ao contrário daquelas que formavam sua irmã, jamais ficaram em paz. Atormentado, dia após dia apenas fazia com que a preocupação da irmã aumentasse, até que idéias de suicido começaram a ser a proferidas por ele como única solução.

    Para infelicidade do homem, tentativa após tentativa de por fim à vida fracassara. Nada era capaz de ameaçar sua existência. Desesperado, tomou de sua irmã a Espada Tsar, encontrada em 1961 no ponto zero da maior explosão nuclear já testemunhada e fez uma nova tentativa, percebendo enfim que algo era capaz de feri-lo.

    Hiiroshima enfureceu-se com o gesto do irmão, pela primeira vez se desentenderam e brigaram. Na manhã seguinte Nagasaki desapareceu sem deixar rastros ou indicações, apenas uma nota pedindo desculpas e falando sobre sua busca de um lugar naquele mundo. Procuraria uma forma de apaziguar aquelas almas.

    Os cidadãos de Motora ofereceram seus sentimentos e apoio a Lady Hiroshima e, durante anos, ela procurou pelo paradeiro do irmão sem sucesso. Concluiu que se ele não quisesse não seria encontrado. Focou-se então nos assuntos de Motora, agradeceu aos esforços dos que a apoiaram e cancelou a força tarefa.

    Apenas uma pessoa persistiu na busca, Chernobyl, um garoto também nascido de forma estranha após um desastre atômico, adotado pelos irmãos. Incansável, ficou anos sem dar notícias a Motora, mas as eventualidades do destino foram vencidas pelo seu espírito quando ele encontrou um homem chamado Belial. Retornou imediatamente para Motora.

    O dia amanhecera há pouco, o céu que não mais conseguia mostrar o sol apenas clareara seu tom de cinza, fazendo com que o brilho das estrelas que estranhamente conseguia transpassar aquela Mortalha, sumisse. Cansado, Chernobyl fez questão de entregar pessoalmente as notícias que trazia sobre Nagasaki. Embora não fossem boas, ele cumprira sua tarefa.

    Foi em Gólgota, uma cidade distante, que ele encontrou Belial e, graças a ele, foi capaz de trazer as informações sobre o possível paradeiro de Nagasaki e uma que realmente perturbou Hiroshima: O Doutor Tannhauser estava vivo.

    Se alguém podia causar medo àquela deusa entre os homens, era o velho doutor. Resquício das péssimas memórias dos dias do Projeto Manhattan, a esse temor se adicionava a dúvida de como ele estava vivo depois de tantos anos. A melhor notícia era a companhia que o garoto trouxera e aguardava o interrogatório de Lady Hiroshima.

    Chernobyl saíra na frente rumo à instalação onde era mantido o prisioneiro que possuía informações sobre Nagasaki. Após resolver os assuntos de maior importância em Motora, Hiroshima pediu a Mustang que a levasse até o local.

    Sabazius decidiu acompanhá-la, seria útil em um interrogatório. E por fim estava Hiroshima, com seus olhos orientais de cor violeta, cabelo de um preto intenso preso em um coque que fazia contraste com sua pele alva, tentando controlar suas emoções em seus pouco mais de 1,60m.

    Quebrou o silêncio dentro do V8 e pediu a Mustang:

    – Você pode colocar alguma música? Não quero chegar lá tensa.

    Mustang acenou com a cabeça e deu um sorriso para Sabazius que apoiou a nuca nos braços e fechou os olhos quando os alto-falantes do carro começaram a tocar RidersontheStorm”.

    A instalação ficava há algumas milhas da cidade, no passado servira como Shopping Center e em seu subterrâneo estava o prisioneiro, um demônio de imenso poder comparável até mesmo ao dos grandes Senhores do Inferno. Hiroshima avaliava o esforço que Chernobyl fizera para trazê-lo até ali vivo, com apenas um braço faltando. Sentada numa cadeira à frente daquela criatura de olhos amarelos, ela perguntou o que ele sabia sobre seu irmão.

    Uma risada foi a resposta do demônio, desafiava Hiroshima por não ver nela, uma garota de aparência exótica, qualquer ameaça. Ainda julgava que Chernobyl tivera sorte em capturá-lo.

    – Não direi nada, apenas me deixe livre… e eu prometo que irei matá-los rapidamente, sem dor.

    Hiroshima deixou claro que seria ela quem resolveria aquele assunto. Levantou-se da cadeira e chegou bem perto dele, ainda com a mão na espada Tsar que permanecia embainhada em sua cintura. Cara a cara, disse apenas uma palavra:

    – Dor?

    O Demônio mantinha o ar de deboche planejando incinerá-la com sua labareda infernal. Após isso, cortaria as cordas que o prendiam com a espada que ela carregava. Mas não foi o que aconteceu.

    Um corte vertical rápido como um relâmpago, cortando metade do pé esquerdo até a altura do ombro da criatura foi feito por Hiroshima, sem que o demônio sequer conseguisse acompanhar o golpe. Ele estava com um enorme ferimento, mas livre, e poderia escapar.

    Nos áditos do inferno, em fogo e enxofre aquela criatura nascera e fora criada, conhecia a dor, mas nunca sentira uma de tamanha intensidade. A lâmina veloz deixou em seu caminho puro sofrimento, como se ácido tivesse sido espalhado por cada milímetro do corte fazendo-o se arrepender do erro no mesmo momento.

    – Você já está morto. Aqui é o seu cemitério. Sua única escolha é continuar a sofrer dores cada vez mais fortes até morrer, ou me dizer o que desejo, e ter, como você mesmo disse, uma morte rápida e sem dor.

    Apenas as palavras de Hiroshima cessaram aquela sensação insuportável, causando alívio a ele após seu corpo ter retesado e no espasmo, os dentes se chocaram com força, trincando a maioria e quebrando alguns.

    – Direi tudo o que você desejar, mas não faça com que eu sinta isso novamente.

    – Seu nome, o que você sabe sobre meu irmão, Nagasaki, e sobre Tannhauser.

    Durante a próxima hora, mesmo solto e podendo arriscar uma fuga, Amon, o demônio, relatou a Hiroshima estar sob ordem de Azazel, um dos Sete grandes demônios que controlavam o mundo, chamados também de Gregoraquinianos. E sob a ordem deste mesmo senhor, Tannhauser tivera sua vida prolongada com a promessa de uma arma capaz de destruir mundos.

    Nagasaki estava com o doutor e a perturbação que o assolara por tantos anos era fruto do poder do homem da ciência sob a égide do Senhor da Ira. Unindo magia e tecnologia nuclear, ele conseguira bombardear o organismo de Nagasaki criando o desequilíbrio necessário para que ele se afastasse de sua irmã e fosse capturado por ele.

    A última informação de Amon foi que seu irmão não era mais o mesmo, se transformara na tutela de Tannhauser e ela devia se preparar para vê-lo novamente. Cumprindo sua palavra, Lady Hiroshima acabou com o sofrimento do demônio não deixando que restasse um átomo sequer de seu corpo.

    Sabazius acompanhara o interrogatório de Hiroshima dizendo quando o demônio mentia, um de seus valiosos talentos, por isso ao sair da instalação, Mustang e Chernobyl viram em seus olhos que as informações não a aliviaram, mas sim eram o início de algo pior.

    Hitoshima encarou a tempestade que se formava com a promessa de chuva que não se cumprira até então. Fruto de seus poderes, inconscientemente criada graças a toda aquela tensão, descarregou um relâmpago que cortou o céu, seguido de um trovão que fez a terra tremer. Sabia o que tinha de ser feito, mesmo que o preço fosse a morte.

    – Voltaremos a Motora. Mustang, por favor prepare o V8 para nosso retorno. Sabazius, assuma meu lugar durante minha ausência, e Chernobyl, tenho um último pedido a você: Vá na frente e prepare o Domo dos Relâmpagos.

    Ao ouvir o pedido o garoto correu imediatamente, sumindo no horizonte. O V8 parou e os dois subiram sem questionamentos. Antes de seguir rumo a Motora, Mustang pediu ao espírito que reforçasse o motor e após isso, pisou no acelerador como sabia ser a vontade de sua soberana.

    Cem, o ponteiro continuou a se mover enquanto Hiroshima evitava pensar nas últimas palavras de Amon.

    Cento e trinta, Sabazius fazia com que os desenhos em sua mão se movessem, providenciando magicamente o que era necessário para atender ao pedido de sua Lady.

    Cento e cinqüenta, Mustang procurou em sua mente uma música adequada a aquela situação

    Cento e oitenta, o isolamento que deixava o V8 em silêncio foi interrompido por alguns acordes.

    Quando o ponteiro marcou duzentos, os alto-falantes enfim começaram a descarregar o som que Mustang conjurara, um grito começou como cantoria e quando o ponteiro bateu em seu limite, duzentos e vinte, foram gritadas as palavras Highway to Hell.

    Duzentos e cinquenta, seria isso que os números mostrariam se continuassem após o ponteiro quebrar a haste que o segurava. Hiroshima tinha um encontro marcado com o doutor.

    Com o advento do apocalipse a questão energética era vital para definir quais cidades conseguiriam sobreviver e se manter, sem sucumbir perante as dificuldades do novo mundo. Hiroshima, à frente desse problema, projetou o Domo dos Relâmpagos, capaz de capturar e armazená-los garantindo poderio energético e militar para Motora. Quando o projeto estava em fase final de construção resolveram que deveriam nomear a inteligência artificial que o controlaria. Escolheram como nome, Zeus.

    Sempre que as reservas ficavam abaixo do nível médio, Hiroshima saia ao ar livre, seus olhos violeta faiscavam por alguns segundos e uma tempestade de raios se anunciava. Mas os relâmpagos não serviam apenas como arma e fonte de energia, eram também a forma mais veloz de locomoção naquele novo mundo. Cavalgar um raio era receber uma descarga que desintegrava o viajante, movendo-o pela Terra na velocidade da Luz. Um transporte imediato.

    De posse das coordenadas fornecidas por Amon e garantidas por Sabazius, bastava aquecer o Domo, programar Zeus e lançar o raio como ponte para o destino.

    Cada relâmpago transportava uma pessoa, mas, ainda em fase de testes, apenas Hiroshima se arriscava a usá-lo. Nem mesmo Chernobyl ainda era capaz de fazer uma viagem segura. Mas para Hiroshima era o suficiente, ela deixaria seus servos no cuidado da cidade instruídos para prosseguir em seus avanços e melhorias. Se alguém tivesse de morrer nessa busca, seria apenas ela.

    – Dê o comando a Zeus, Chernobyl!

    Mustang estava ao lado do garoto, junto a Sabazius. Ambos reprovavam aquela loucura, mas seria impossível dissuadir Hiroshima de fazer aquilo sozinha. Ela contava com o fator surpresa, do contrário o Doutor poderia desaparecer novamente com seu irmão. Temiam pela segurança dela e por esse mesmo motivo não aguardaram que Zeus terminasse a operação, saindo sem que ela visse, desobedecendo as suas ordens.

    – Tudo pronto. – Avisou Chernobyl

    – Então lance-o!

    O mecanismo foi ativado e com o ribombar de um trovão a plataforma desapareceu momentaneamente em um clarão cegante. Quando recuperou a visão, ela não estava mais lá.

    Hiroshima demorou um pouco para se recuperar do enjôo da viagem, apenas o conhecimento profundo que tinha da matéria foi capaz de reintegrá-la novamente, ainda era arriscado viajar daquela forma. Sob seus pés a areia vitrificara-se com o choque, ela estava no deserto a menos de uma milha da instalação do Projeto Manhattan.

    Caminhou e não demorou a chegar próximo à casa feita em volta da entrada para as instalações subterrâneas. O solo era rico em radiação e por isso jamais conseguira localizar seu irmão, ela interferia em seus sentidos especiais.

    Amon tinha importância no projeto, era braço direito do Doutor Tannhauser e sua ausência fora percebida, com isso, as defesas da base estavam todas ligadas e os soldados atentos a qualquer invasão, mas Hiroshima não teria misericórdia de quem atrapalhasse seu objetivo. Ao chegar a cem metros da casa, foi desferido o primeiro ataque.

    Uma cratera surgiu na areia, da largura de um campo de futebol revelando um platô de metal. Dele saíram centenas de soldados armados e protegidos por armaduras. Os olhos violeta faiscaram por um segundo e a primeira explosão aconteceu, um dos soldados teve seu cinto de granadas ativado e junto a ele levou um bom montante da força de batalha em uma reação em cascata.

    Restavam pouco mais de setecentos homens, ela abaixou a cabeça em saudação à morte de cada um deles e se deslocou rompendo a barreira do som enquanto acertava a primeira fileira, a segunda e as seguintes. Tiros eram disparados inutilmente acertando apenas os outros soldados e diminuindo o efetivo da tropa.

     Seus punhos brilhavam em tons perolados causados por um efeito furta-cor. Com cada golpe, o soldado atingido explodia de dentro para fora devido à autocombustão. Era o suficiente para afetar ao menos dois próximos a ele. Seus pés apenas contribuíam para o efeito cascata com saltos e chutes desferidos contra os soldados, lançava-os longe atingindo vários outros na trajetória. Ao caírem no chão, explodiam como verdadeiros homens-bomba.

    Não ligava para a vida daqueles infelizes, estava furiosa e fez com que os poucos que sobrevivessem desistissem de oferecer resistência. Corriam pelo medo da deusa assassina de punhos cintilantes, vinda dos céus que desferia sua fúria contra as atrocidades que eram feitas dentro da instalação. O efeito psicológico se espalhou rápido, mesmo pelas fileiras que ainda estavam lá dentro.

    Um dos sobreviventes estava sem as duas pernas, esvaindo-se em sangue e morreria em questão de minutos. Hiroshima levantou o corpo moribundo pelo colarinho e lhe ofereceu:

    – Me diga onde está o doutor Tannhauser e o oriental que ele mantém preso e você viverá para testemunhar minha compaixão.

    O soldado decidiu que não valia morrer pelo patrão e contou a ela que ambos estavam no vigésimo andar subsolo. As pernas do homem cresceram novamente como por mágica e ele agradeceu a aquela deusa por uma segunda chance. Correu sem olhar para trás contando todas as bênçãos de sua vida.

    Seguindo pelo platô chegou a um galpão com tamanho suficiente para fazer com que alguns helicópteros pudessem voar livremente e disparar contra ela toda sorte de armamentos. Os calibres eram diversos, .30, .50, munição de urânio desativado, capaz de atravessar até blindagem, ou explosiva. Mas nada era capaz de feri-la.

    Com um pulo novamente ela quebrou a barreira do som, chocando seu corpo diretamente contra o primeiro helicóptero. Seus punhos cintilaram e um após o outro eles foram destruídos sem que Hiroshima sequer suasse. Um último helicóptero subiu desgovernado contra o teto do imenso galpão e explodiu espalhando fogo para todos os lados, o piloto pulara dele sem sequer ativar o para quedas. Morreu instantaneamente ao se chocar com o chão de metal sólido.

    Antes que Hiroshima se aproximasse, o elevador foi recolhido e uma comporta de aço maciço se fechou no lugar dele. Os olhos faiscaram ainda mais de raiva, com um golpe atravessou os quarenta centímetros de aço rasgando-o como se fosse feito de papel e assim pulou para a centena de metros que separavam o próximo andar.

    Enfrentou tanques e morteiros, bombas de vários quilotons detonadas em seu rosto e inúmeros artefatos de guerra, mas nada impediu que chegasse enfim ao vigésimo andar subsolo, onde Tannhauser aos berros xingava os soldados que se recusavam a enfrentar a vingança dos céus. Quatro demônios ainda tentaram protegê-lo, Cimejes, Zagan, Hagenith e Malphas, mas tal qual Amon, sucumbiram à dor causada pela espada Tsar e imploraram pela morte.

    – Então você está vivo. Não fez mal o bastante a nós quando crianças? – Hiroshima embainhou novamente a Espada Tsar após derrubar os quatro demônios.

    O Doutor encarava Lady Hiroshima com ódio e temor por aquele feito, não avaliara que ela seria capaz de resistir a todos aqueles ataques sem sofrer um arranhão. Não devia fugir da agenda de seu mestre, Azazel, mas não morreria ali para aquela aberração.

    – Você quer o seu irmão? Então tome o seu irmão! – Socou uma caixa de vidro que protegia um botão vermelho no painel.

    Uma sirene começou a tocar e em seguida surgiu o som de um elevador em alta velocidade atrás de Tannhauser. A parede se abriu e dela saiu Nagasaki. Mas aquele não era seu irmão, o olhar de ódio indicava uma criatura quase irracional que sofrera mais do que qualquer outra podia suportar sem perder a sanidade. Hiroshima ficou imóvel pela surpresa e foi atingida por um único golpe de espada que atravessou seu corpo.

    Pela primeira vez algo conseguira feri-la desde sua infância, pela primeira vez algo conseguira ferir não apenas seu corpo, mas também seu espírito. Nagasaki estava perdido e a vida não valia mais a pena. Caiu de joelhos.

    Tannhauser gargalhava sua vitória, comemorava sua genialidade e a sua maior criação. As lágrimas da derrota de Hiroshima atrapalharam a visão e ela pensou ver Nagasaki pedindo por ajuda, mas a mente dele não estava ali. Apenas um braço.

    A visão ficou turva e ela fechou os olhos expandindo sua consciência intuitivamente. Apenas o braço pertencia a seu irmão, de alguma forma, mágica ou tecnológica, o doutor conseguira clonar o resto do corpo criando aquela criatura, mas sem conseguir reproduzir o milagre que era a existência deles.

    Hiroshima enxugou os olhos e viu que seu irmão também chorava, ouviu um disparo atrás de si e lá estavam Sabazius e Mustang, aturdidos com a visão daquela criatura.

    A batalha demorou horas, andar após andar, sem que ela percebesse. Tempo suficiente para que Mustang e Sabazius partissem de Motora no V8 experimental capaz de velocidades impressionantes. Hiroshima não percebera a passagem do tempo por estar furiosa, por não sentir cansaço ou remorso a cada morte, mas eram todos aqueles passos para um inevitável momento: Confrontar a verdade bem em frente aos seus olhos.

    – Ele está pedindo para que você o mate, que elimine essa criatura que mantém os pedaços de seu corpo separados – Sabazius estava completamente incrédulo por testemunhar aquela atrocidade, mas o que disse foi o bastante para desencadear o que aconteceu em seguida.

    Explosões coroam a fúria. Vociferação e berros são o som do ódio.  Agressão é a forma mais clara de demonstrar a raiva. Todos, sentimentos oriundos de apenas um que acompanha a humanidade por incontáveis eras. O caos que a fúria causa, muitas vezes perdido na confusão do ódio ou na garganta engasgada da raiva são tomados pelo homem comum como o mais terrível dos sentimentos.

    Tudo isso é como um quadro do qual se está próximo demais, vendo cores múltiplas e confusas, mas que ao se afastar o suficiente, se vê que ele é branco, vazio, nulo e infinito, como se revelara ser a genuína Ira.

    O único pensamento que passava pela mente de Lady Hiroshima era a paz, a tranqüilidade de ter idéias tão claras e alinhadas, compreendendo a ordem oculta por trás do caos. Ao contrário do que imaginara os olhos não escurecem tudo quando a verdadeira Ira rompe cada partícula do ser, mas sim clareiam tudo em um oceano de infinitas possibilidades.

    Azazel tremeu em seu trono sentindo cada pulso de energia que foi lançado naquela instalação.

    Hiroshima, ciente de tudo a sua volta, percebeu que seu corpo brilhava e parecia se expandir, Sabazius tirou a espada do estômago de sua soberana e cortou o braço da criatura à frente dela, imóvel e já sem vida. Disse palavras que não foram ouvidas por ela enquanto olhava fixamente o doutor caído no chão tentando se erguer na parede oposta. Toda aquela sensação tomou seu corpo em uma onda gostosa e relaxante, fazendo com que fechasse seus olhos e abraçasse seus joelhos conforme flutuava no ar. A Ira era um sentimento familiar e acolhedor. Ela era a Ira.

    Acordou horas depois deitada na areia ao lado de Sabazius e Mustang. Os dois estavam feridos gravemente com queimaduras terríveis pelo corpo. E um braço, o mesmo que pertencia a seu irmão, ao lado da espada que a perfurara. À sua volta estava um V8 com a lataria retorcida, como se tivesse sido atingido por um míssel ou algo semelhante. Mas onde estava a base?

    Socorreu seus amigos ainda em paz, feliz e tranqüila. Com seus poderes regenerou aqueles ferimentos que teriam aniquilado humanos normais cujos corpos não se tornaram mais fortes com a convivência prolongada com uma entidade da radiação. Quando eles estavam fora de perigo, perguntou-lhes o que acontecera. Sabazius relatou ainda incrédulo por tudo que vira:

    – Eu jamais concebi a Ira como algo belo. Terrível, mas ainda assim belo. Seu corpo cintilou tal qual uma pérola, tornando-se furta-cor como apenas eu vira seus punhos.  Energia pura pulsava diretamente de você e percebemos que você não ouvia nossas palavras. Subimos rapidamente e entramos no V8 conseguindo correr por várias milhas, mas mesmo assim não fomos capazes de escapar completamente do raio de ação do que aconteceu.

    – E o que aconteceu? – Hiroshima ainda não compreendia.

    – Olhe para trás e veja. O deserto está em chamas.

    Ao longe labaredas subiam ao céu, no lugar do deserto onde antes estava a base. Seu corpo explodira abrindo um buraco colossal no meio da areia, do qual saiam gases em combustão continua. Quando tentou entender como seu corpo sobrevivera a aquilo e estava ali ao lado de seus amigos, relembrou de cada momento que precedeu a Ira. Sim, ela rompera seus limites e da mesma forma que nascera de uma explosão, renascera ainda mais forte de outra, semelhante a uma ave que conhecia de vários mitos antigos.

    Levou os amigos até o V8 destruído e com apenas um sussurro para a matéria, ela a obedeceu e começou a se rearranjar. O metal rangeu retorcendo-se e tomando a forma do veículo de outrora. Mustang e Sabazius continuaram calados, tentando fazer com que suas mentes aceitassem aquela readequação da realidade. Subiram e aceleraram rumo a Motora.

    Lady Hiroshima tomou o braço do irmão e conseguiu sentir ele vivo, tomou a espada Fukushima e a colocou ao lado de Tsar. Seus olhos ainda faiscavam com uma fagulha de esperança por saber que ele vivia espalhado pelo mundo em vários pedaços aprisionados a criaturas ainda mais nefastas que aquela.

    Os alto-falantes começaram a espalhar a música onde podia se ouvir:

    Hellraiser,
     In the thunder and heat

     
    Hellraiser,
     Rock you back in your seat

     
    Hellraiser,
     And I’ll make it come true

     
    Hellraiser,
     I’ll put a spell on you

    Uma missão terminara, mas outra maior começava. Azazel em seu trono distante sentiu temor por saber que a Ira de Hiroshima viria fatalmente em seu encalço e que talvez nem mesmo a união dos poderes dos outros seis Gregoraquinianos seria o bastante para salvá-lo.

  • Segredos sobre a jornada mercurial

    Segredos sobre a jornada mercurial

    (avareza)

    – A beleza do céu de hoje não é sequer sombra da de antigamente. Mal podemos ver as estrelas – Lunara suspirou enquanto pintava aquele céu cinzento com cores de sua imaginação, usou primeiro o verde de seus olhos, em seguida o tom raro acobreado de sua pele e por fim o loiro que tinha em algumas mechas de seu cabelo.

     – Os mais velhos falam de uma época na qual não se preocupavam tanto em vê-lo, ele estava sempre lá a esperar e ninguém iria tirá-lo dali.  Os que tentavam não podiam vê-lo bem de dia, com o Sol brilhando a ponto de machucar os olhos, nem de noite, se viviam nas cidades. Luzes artificiais iluminavam tanto que cobriam qualquer visão celeste. 

    – Então como eles conseguiam ver o céu, senhorita? – Eli, o jovem protegido de Lunara, perguntava cheio da curiosidade típica dos jovens ouvindo histórias sobre um tempo distante.

    – Se afastavam das cidades, iam para os lugares distantes onde não existiam luzes artificiais e só então podiam contemplar a verdadeira beleza do céu e das estrelas.

    – Mas isso faz muito tempo?

    – Sim Eli, foi antes de eu nascer. Ainda assim acredito que se eu visse o céu ele seria exatamente como eu o imagino. Sabe, às vezes eu o vejo em meus sonhos, quando tento acompanhar o Peregrino. – Olhou profundamente os olhos amendoados do garoto com pouco mais de dez anos, careca como era o costume para os aprendizes.

    – Eu gostaria de vê-lo um dia também, senhorita.

    – Você irá, quando completar seus doze anos e for um homem será aceito na Sinagoga Sinistra, e então poderá ver o teu Peregrino – Falava sobre o rito de passagem pelo qual ele passaria.

    Lembrava muito bem de quão especial era aquele momento, ainda mais para ela que se tornara especial para toda a congregação, recebendo ensinamentos que completavam as lacunas dos mestres daqueles dias.

    – Não o Peregrino, senhorita, o céu – Lunara entretida no próprio reflexo nos olhos do garoto se confundiu e riu, não sabia se via as esperanças dela refletidas nele, ou se eram a pureza com a qual ele via sua senhorita.

    – Eu espero que um dia possamos juntos ver esse céu e que vençamos a Mortalha que cobre o mundo desde o dia que o Inferno e a Terra se juntaram. Mas agora me diga Eli, qual é seu recado?

    – Os outros mestres a chamaram, disseram que encontraram o que você está procurando.

    De volta à realidade, Lunara se via ao lado de Eli naquela terra inóspita que se tornara toda extensão conhecida do mundo, a mesma que clamara seu sangue e seus juramentos no seu décimo segundo aniversário para que os homens tivessem uma segunda chance.

    – Se eles já sabem onde está, partirei logo. Sele Draunir e deixe-o pronto para a viagem.

    – Sim, senhorita. Mas tem certeza? Dizem que ele é cruel.

    – Não se preocupe, ele não o será com você. Apenas respeite-o e faça o que ele pedir.

    Após a instrução, Eli saiu do aposento rumo à estrebaria descendo a escada da torre de Lunara sem fazer barulho, ela apreciava a leveza do garoto. Olhou uma última vez para o céu e em seguida para seu quarto, organizou o que levaria consigo em mala uma deixando-a para a viagem, só então seguiu para o tabernáculo.

    – Lunara, nós encontramos enfim a informação que o Peregrino lhe disse nos sonhos. Temos a tradução do código e com ele você poderá encontrar o tomo.

    O homem de olhos azuis e severos era Nial, um dos mestres da Sinagoga. Velho, com ralo cabelo branco, sentava-se no centro do meio círculo do tabernáculo como forma de prestígio por ser o mais antigo ali.

     – Sim, senhor. E onde irei encontrar esse tomo?

    – O único lugar onde ele poderia estar, minha querida, em Novalexandria – O homem quebrou a expressão severa deixando escapar um breve sorriso sádico.

    Ele não gostava de Lunara desde a ocasião no qual ela resistira a seus avanços afetivos, quando mais nova. Tal desgosto crescera ainda mais quando ela se tornou a mestra mais jovem a ser aceita e ele teve de passar a tratá-la como um igual.

    – Novalexandrinos… – disse a palavra com apreensão, sabia da fama que eles tinham quanto a sua possessividade pelos tesouros que guardavam.

    -… Será uma aventura interessante – e devolveu o sorriso a Nial fazendo com que ele cerrasse os dentes perante aquele desafio.

    – Você chama de aventura um assunto da maior importância para nosso povo?

    – Sim, é claro que é uma aventura, qualquer dia viajando fora dessas muralhas, seja qual for o objetivo, é uma. Não tome minhas palavras por levianas, são apenas palavras de uma pessoa jovem com muita disposição para encarar tais desafios. – Mencionar sua idade era sempre um golpe contra o velho e, embora o odiasse, precisava manter o ar de respeito por ele devido a sua posição na Sinagoga.

    Nial franziu a teste em raiva, trocaram olhares faiscantes por alguns segundos até que Matrona, outra mestra e, a segunda mais velha, interrompeu aquela disputa com suas doces palavras.

    – Como pretende ir, minha filha, devemos pedir ao xamã Elias que conjure os espíritos e faça o V8 se mover ou devo pedir a Belerofonte que sele um de nossos Árabes?

    Os Árabes eram os três únicos cavalos que existiam, um reprodutor velho e duas éguas jovens demais para fazer uma viagem. Ainda, sob eles recaia toda a esperança de Belorofonte em recuperar a espécie que era considerada extinta.

    – Nenhum dos dois, senhora. Os Árabes não têm condição de agüentar essa viagem, seria levá-los para a morte. Já o V8 se torna inviável para uma viagem sozinha, eu não sei dirigi-lo tão bem – Não podia confiar em máquinas movidas por espíritos se iria em direção aos Novalexandrinos, qualquer armadilha, e ela estaria realmente enrascada.

    – E como pretende fazer essa viagem, espero que não esteja pensando em ir por suas próprias pernas – Ao contrário de Nial, a Matrona demonstrava preocupação, sem ironia ou sarcasmo.

    – De forma alguma, Senhora, já pedi a Eli que sele Draunir.

    – Como ousa libertar aquela vil e insidiosa criatura? Não pense que você irá fazer isso e ficaremos calados, aquele monstro matou dois de meus mais fiéis aprendizes – Nial enfurecera-se.

    Lunara esperou que ele terminasse seu surto, o rosto do homem inchara quando ele perdera o controle e ficara vermelho de tão nervoso. Quando ele se acalmou e tomou por vencida a discussão, ela respondeu:

    – Senhor Nial, não vou dizer que Draunir é uma criatura naturalmente boa, o fato de ele ser uma criatura do Inferno põe um ponto final sobre esse assunto. Agora, quanto a seus homens, eles mereceram a morte que tiveram por atentar contra uma vida por puro capricho gastronômico. Estou falando de uma criatura viva e inteligente que apenas se defendeu de dois imbecis que queriam forrar o estômago com, “carne exótica”, se não me falha a memória.

    – Mesmo que… – Nial iniciaria outro discurso acalorado, quando Lunara elevou sua voz e o interrompeu.

    – Eu não terminei de falar! Acho que esqueceu que eu não estou abaixo de você, e sim, sou sua igual. Trato-o por “senhor” por educação aos mais velhos, mas não tome essa educação como sinal de submissão, decidi levar Draunir pois confio em sua honra a ponto de ter enviado meu protegido, Eli, para selá-lo.

    O velho engolia calado cada palavra, Lunara estava com a razão, não tinha como exigir nada dela, também mestra da Sinagoga. Com isso seu olhar odioso atravessou a sala enquanto bufava ardentemente pela ousadia dela em tratá-lo daquela forma, sem mais possibilidades de fazer sua vontade valer, vociferou:

    – Você vai se arrepender disso, garota, sua impertinência e insubordinação não serão toleradas por esse conselho – Então Matrona o interrompeu:

    – Basta, Nial! – conforme se levantara de sua cadeira a sala fora tomada por uma rápida rajada de vento, o sinal de que o velho tinha conseguido irritá-la.

    – Se Lunara nos dá sua palavra de que a criatura é de confiança nós a tomamos por certa, é hora de repararmos o seu erro, não me lembro de ter sido permitido a tal criatura um julgamento justo antes de ser jogada naquela cela. Você tem agido impunemente sem levar em conta que isto é um conselho e que todas as vozes aqui são iguais. Se você se opõe a ela, votemos!

    A votação favoreceu Lunara. Vencido, o velho saiu de sua poltrona em direção à porta seguido dos dois únicos mestres que ficaram ao seu lado na votação. Antes que chegasse à porta, Matrona lhe perguntou, com a mesma voz suave de outrora:

    – Você não está se esquecendo de nada, Nial?

    Ele parou, voltou-se a Lunara e jogou em sua direção uma pequena lasca de pedra com a esperança de que ela acertasse seu rosto, frustrado após ver a mulher pegar a pedra sem o menor esforço, abandonou o tabernáculo batendo a porta atrás de si.

    – Receba então nossa benção, minha filha – Todos se levantaram e estenderam as mãos em direção à Matrona, que proferiu a benção:

    “Possam os ancestrais verdejar teu caminho pelas entranhas do vale da morte,
     possa o teu
    Peregrino protegê-la e abençoá-la com a coragem do leão e da águia,
     não terás medo do terror da noite nem da seta que voa na penumbra,

     nem da peste que anda na escuridão
    nem da mortandade que assola ao meio do dia,
     mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti.”

    Lunara agradeceu ao encantamento lançado e guardou a lasca de pedra em seu bolso, saudou aos mestres restantes e saiu do tabernaculo, ciente de que embora Nial fora vencido pelo conselho, ele não pararia ali em seus surtos de desmandes.

    A jornada à sua frente só poderia ser feita com o auxílio e a fé no Peregrino.

    Eli coçava a cabeça encabulado quando Lunara chegou, riram juntos, pois ele temera tanto Draunir e estava inteiro, sem nenhum dedo faltando, que era impossível não achar engraçada aquela situação. Repassou pela última vez os cuidados que deveria tomar com a ausência de sua tutora e se despediu com um abraço, recebendo então uma benção e um beijo em sua testa.

    Após a saída de Eli ela tomou um longo banho quente temendo que não pudesse tomar outro tão cedo, arrumou-se e pegou a mochila já pronta. Desceu as escadas de seu aposento e passou pelo salão principal onde Nial conversava com seus dois amigos entre uma colherada e outra de sopa. Tentou passar rápido para evitar olhares, gracinhas ou provocações, sem sucesso:

    -… Irá sozinha, pois ninguém a ama, nem mesmo aquele bastardo que ela toma como protegido. Ele apenas se apega a ela com medo de que eu exponha sua verdadeira história – A insidiosidade dele foi a gota d’água para Lunara.

    Enquanto ele mantinha suas ameaças a ela, pouco importava, faltava ao homem coragem para tentar qualquer coisa, mas Eli era uma criança indefesa. Aquilo mexeu com suas entranhas e antes que ela percebesse, estava levantando Nial pelo pescoço:

    – Um arranhão, uma queixa. Qualquer ato de agressão e eu esquecerei sua posição, arrancarei sua pele como a de uma raposa lhe deixando vivo, para sofrer pelo mal causado.

    Nial sufocava com a força dos dedos de Lunara, sabia da diferença de idade entre eles, mas jamais esperaria tamanha força a ponto de erguê-lo mais de trinta centímetros do chão, como a um graveto. Os dois outros mestres tentaram em vão fazê-la soltar o amigo, a fúria cega apenas se esvaiu quando Matrona se aproximou:

    – Vá, minha filha, não importa o que este homem velho e rancoroso tenha dito. Cuidarei pessoalmente de Eli e de sua segurança.

    Lunara soltou Nial ao ouvir aquelas palavras, o velho caiu no chão igual a um saco de batatas, mal conseguindo se recompor daquele ataque surpresa. Ela atravessou o salão principal e agora estava segura de que nada aconteceria a Eli, pois o velho, embora fosse astuto e vingativo, prezava demais sua própria integridade, o que significa que ele temia Matrona.

     Chegou à estrebaria, um dos lugares mais bem cuidados da Sinagoga que indicavam a paixão de Belerofonte pelos eqüinos, passou pelos Árabes certificando-se de que estavam em melhores condições das quais chegaram e encontrou o responsável que sorriu ao vê-la se aproximar:

    – Mestra Lunara. Quanta honra tê-la aqui.

    – Não me chame de mestra Bel, temos quase a mesma idade. “Mestra” faz com que eu me sinta velha antes do tempo.

    – É o costume em lidar com todos os mestres, automático.

    – Tudo bem, mas quando estivermos apenas entre nós pode me chamar pelo meu nome, ficarei mais a vontade. E como está Draunir?

    – Mes… Lunara, a força e a saúde dessa criatura são incríveis, mesmo após tanto tempo preso ele continua melhor que os Árabes que são bem tratados desde sua chegada.

    Aquilo a contentava, sabia que se alguém cuidaria bem de qualquer animal parecido com um cavalo, seria Belerofonte, mal podia esperar para montá-lo e iniciar sua viagem.

    – Ele é uma criatura magnífica, agradeço sua atenção e dedicação Bel, mas agora devo me apressar.

    Despediu-se e seguiu para a última baia, onde encontrou Draunir contente pela primeira vez em tanto tempo. Oito patas fortes, pelagem negra e reluzente, dois pares de olhos ígneos e um sorriso malicioso que se abriu ao vê-la.

    – Olá “Il Mulo”, você está bem melhor agora!

    – Já pedi que não me chamasse assim – zombou – é claro que estou bem, Eli e Belerofonte foram atenciosos comigo, sequer imaginava que alguém poderia me tratar assim. Quanto a seu amigo, ele sequer se estranhou com meus hábitos alimentares.

    Draunir podia parecer com um cavalo, ou melhor, com uma mula, por não ser tão alto e ter uma constituição robusta, mas no fim das contas ele era uma criatura do inferno, seus traços dissonantes dos outros eqüinos deixavam claro. Quanto à sua alimentação, era carnívoro, seus dentes afiados e pontudos deixavam isso bem claro.

    – Então após um longo banquete, o lendário descendente de Sleipnir me dará a honra de cavalgá-lo? Não me levará para nenhuma armadilha?

     – Sem a menor sombra de dúvidas Lunara, só por sair daquela prisão e poder movimentar minhas patas novamente, lhe sou eternamente grato. Quanto a minha lealdade, acredite, você sobreviverá para conhecer.

    Sorriu em retribuição, alisou o pelo macio e se lembrou da primeira vez que o vira em toda sua imponência, bem diferente de como ele estivera nos últimos tempos, sujo e machucado sendo maltratado na prisão.

    – Então chega de conversa mole, temos um caminho longo a trilhar. – Queria sair daquelas muralhas o quanto antes.

    – Posso saber para onde iremos?

    – Claro, conto com sua velocidade lendária para que alcancemos Novalexandria em menos de uma semana. – O caminho durava mais de vinte dias no trote de um cavalo saudável qualquer.

    – Então suba, coloquemos a conversa em dia ganhando um pouco de chão.

    Lunara montou em Draunir, saíram da estrebaria se despedindo de Belerofonte em um galope moderado. Ao chegarem às muralhas de pedra a despedida foi de Eli que estava junto à Matrona. Passada a primeira centena de metros fora das muralhas, ele a alertou para que segurasse com força em suas rédeas.

    Rapidamente ganharam velocidade, era incrível como ele se movia com aquelas oito patas, Lunara sentia pela primeira vez o prazer da alta velocidade, fixou-se naquela sensação por algumas horas sem que conversassem, sem que pensassem na dura tarefa que teriam adiante.

    Eram apenas um com o vento.

    Cavalgaram por quase um dia inteiro sem paradas e só fizeram a primeira a pedido de Lunara que não estava acostumada a uma viagem tão longa, montaram acampamento e sequer conversaram, pois ela dormira nos primeiros minutos.

    Amanhecia, Lunara olhou para o céu e se lembrou que a última vez que olhara para ele estava a quilômetros de distância, em companhia de Eli e segura dentro das muralhas. Levantou-se assustada por ter baixado tanto a guarda, olhou em volta e não viu qualquer sinal de Draunir.

    Se ele aproveitara seu sono e fugido, era tarde demais para pensar em procurá-lo. Começou a arrumar suas coisas preparando-se para o pior, encarar uma longe viagem até Novalexandria da forma que Matrona advertira-a de fazer, foi quando ouviu o galopar inconfundível da criatura ao longe.

    Na planície que se encontravam, Draunir deixava um rastro de poeira por onde passava, trazia algo em sua boca, e de longe era possível definir apenas seus olhos, como quatro faróis ígneos lhe dando uma aparência assustadora, entendia o motivo pelo qual o chamavam de “Il Mulo”, ele era a perfeita semelhança de um terrível demônio das histórias antigas.

    – Achei que tinha fugido. – Lunara disse aquilo fingindo certo desdém quando ouviu ele se aproximar.

    – Fui caçar – falou com algo atrapalhando a boca – e trouxe isso para você.

    Lunara ouviu o barulho de algo caindo no chão, pensou em manter o desdém por mais algum tempo, mas não resistiu, virou-se e viu ali a coxa de um javali ainda com sangue fresco. Draunir caçara para ele e para ela.

    – Aposto que você não come carne de verdade há muito tempo, aceite isso como mais um gesto de minha gratidão.

    Emocionada, aproximou-se de Draunir e abraçou-lhe pelo pescoço, não disse nada, mas ele sabia que ela era quem agradecia tanto a ele pelos muitos momentos de conversas que tiveram desde sua prisão, momentos esses no qual ele ensinou a ela canalizar e a usar sua verdadeira força, exatamente como fizera com Nial naquele momento de raiva.

    – Lunara, nunca daria certo entre nós, anatomicamente falando, eu jamais poderia…

    – Cale-se, seu sujo – Lunara chutou a perna dele e sentiu a dor de bater em algo sólido como granito, caiu no chão e começou a se contorcer de dor.

    – Vamos, espero que não tenha quebrado nenhum osso. – Draunir disse, preocupado.

    Lunara começou a fazer um barulho estranho, se contorcia arfando muito e a criatura tomou aquilo por um choro, talvez sua brincadeira tivesse sido muito pesada ou ela tivesse realmente quebrado algo, abaixou sua cabeça empurrando-a com o focinho e perguntou:

    – Machucou muito Lunara? Ou minha brincadeira foi estúpida demais?

    Mas não era esse o caso, Lunara estava passando mal de tanto rir, chorava de dor sim, mas ria ao mesmo tempo de sua idiotice em chutar a perna da criatura e da malícia dele.

    – Anatomicamente – foi a única coisa que disse isso e voltou a se contorcer de tanto rir.

    Após se recompor, agradeceu mais uma vez pela carne e a preparou enquanto terminava de apagar os rastros do acampamento, conversaram amistosamente com bem menos seriedade com a qual estavam acostumados naquela prisão.

    Como Draunir disse, a carne era maravilhosa, ele concordou e disse que a preferia crua. Enfim se levantaram e deram continuidade à viagem com um peso a menos em seus ombros, agradeciam em silêncio a amizade que tinham.

    O resto dos dias não foram tão generosos quanto às condições climáticas. Era incrível que com apenas alguns dias de viagem o clima pudesse mudar tanto, saíram da Sinagoga Sinistra, onde fazia calor, passaram por um deserto causticante e por fim chegaram à neve, com um frio terrível e inesperado.

    Era o anoitecer do quinto dia, Lunara se perguntou se conseguiria completar a jornada, já que faltava tanto para chegar e ainda mais tanto para ser conquistado. Draunir a animou quando disse:

    – Se continuarmos agora, chegaremos pelo amanhecer. Já consigo ver ao longe o obelisco de Novalexandria.

    – Não sabia que você podia enxergar coisas tão longe, ainda mais com essa nevasca.

    – Acredite em mim Lunara, são poucas as coisas que não posso ver com esses olhos, e menos ainda as que conseguem esconder algo de mim – deu a ela um olhar malicioso de cima a baixo, como faria um adolescente vendo aquele belo corpo escultural.

    – Então vamos terminar isso logo.

    Da mala que carregava, tirou uma túnica cinzenta belíssima, ficou nua na frente de Draunir e começou a se trocar:

    – Não devo ter nada que você não tenha visto antes, não é mesmo?

     Após colocar a túnica que, mesmo sendo fina, era muito mais efetiva para protegê-la daquele frio, amarrou o cabelo e colocou nele uma pequena rede. Com o medalhão, que completou sua vestimenta, estava pronta para encontrar qualquer um como representante de assuntos oficiais da Sinagoga Sinistra.

    – Uau, você tem classe – Draunir debochou.

    – Sim, e aposto que isso você não tinha conseguido ver ainda – Montou novamente, e seguiram as últimas horas de viagem.

    Draunir provou estar certo, na manhã seguinte ela já conseguia ver o Obelisco de Novalexandria, embora conhecesse os rumores, nunca estivera ali, e se espantou ao ver que tudo era um deserto de neve, uma imensidão branca sem fim.

    – Você tem certeza que estamos no lugar certo?

    – Sim, Lunara, e pelo visto essa é a sua primeira vez aqui.

    Enquanto ela permanecia frustrada esperando piscar e ver a monumental cidade à sua frente, continuaram a galopar, chegando por fim ao Obelisco.  Draunir se aproximou o bastante dele e disse:

    – Desejamos entrar na cidade de Novalexandria.

    O Obelisco negro foi subitamente iluminado por uma luz azul que percorreu toda sua extensão, revelando nele desenhos entalhados que antes eram invisíveis aos olhos nus.

    – Quem deseja entrar na cidade de Novalexandria? – a voz surgira vinda do Obelisco, era masculina e não muito forte, talvez fosse de um homem jovem.

    – Lunara, da Sinagoga Sinistra. – Assim ela disse ao receber a indicação com a cabeça de sua montaria.

    Mais uma vez a luz azul subiu pelo Obelisco, mas dessa vez deixou para trás uma pequena esfera na altura do rosto de Lunara, a esfera pareceu girar e Lunara percebeu que aquilo era um olho.

    – Não temos assuntos com a Sinagoga Sinistra. Você não é bem-vinda aqui. Retire-se ou sofra as conseqüências. – A voz tornara-se menos amistosa, Lunara percebeu que realmente tinha motivos para desconfiar tanto dos Novalexandrinos.

    – Vim em uma busca oficial da Sinagoga Sinistra, estou à procura de um tomo.

    – Todos estão à procura de algum de nossos tesouros. Mas eles não estão disponíveis para nenhum não-Novalexandrino.  Retire-se, esse é o último aviso! – A voz não era mais a mesma, embora tivesse semelhança, agora era grossa e ameaçadora, fazendo com que Lunara suasse mesmo naquele frio.

    – Não fiz essa viagem toda para voltar de mãos vazias, nem mesmo vim para cá sem ter nada a oferecer – colocou a mão na bolsa e a voz respondeu:

    – Não faça movimentos bruscos, retire o que quer que seja de sua mochila lentamente. – E a voz transformara-se novamente na primeira voz ouvida.

    Lunara obedeceu, tirou da mochila um pequeno livro de autoria de Matrona, um manual sobre o trato com plantas híbridas do inferno, desde pragas que se infestavam em minutos, até ervas que podiam trazer um morto de volta à vida.

    – Este tomo foi escrito por Matrona, é um presente para as fileiras de Novalexandria se eu encontrar o que vim buscar aqui – O olho virou-se diretamente para o livro e ordenou que ele fosse aberto, provando ter algum conteúdo.

    – Sua entrada foi autorizada. Seja bem-vinda à Novalexandria, a morada do saber.

     O Obelisco se apagou completamente, após alguns segundos a neve o chão coberto de neve começou a se levantar, revelando um enorme ancoradouro, aquela construção deixou Lunara boquiaberta, jamais vira tanta tecnologia em sua vida, quanto mais em uma porta.

    Quando o som enfim cessou, a neve começou a derreter rapidamente revelando uma porta enorme de metal vermelho pelo calor. Poucos segundos depois, quando não restara neve no caminho, a porta expeliu vapor pela sua parte superior e o metal se tornou novamente cinzento. Outro barulho e finalmente a porta para Novalexandria se abria.

    – Essa sua cara de besta, definitivamente, eu jamais tinha visto – Draunir riu enquanto Lunara ainda estava tentando absorver tudo que acontecera ali em uma fração de segundos.

    Adentraram o ancoradouro e desceram por uma rampa que se estendia por mais de duzentos metros, por fim chegaram a uma segunda porta de aço.  Uma terceira se levantou quase 20 metros atrás deles e repentinamente o chão começou a descer, estavam em um dos inúmeros elevadores de carga rumo ao coração da cidade.

    Lunara sentia que a velocidade da descida era incrivelmente rápida, mas ainda assim não parecia sentir qualquer efeito dela, apenas uma pequena sensação de desconforto no estômago como se estivesse em queda livre.

    – Não se preocupe, não iremos cair e nos espatifar no chão – Draunir já estivera na cidade, embora jamais tivesse contado para Lunara.

     – Já vi que não é sua primeira vez aqui, certo?

    – Acertou em cheio.

    – E porque jamais me disse como seria a recepção ou mesmo essa maravilha tecnológica?

    – E perder a sua cara de surpresa? Jamais!

    Quando enfim pararam, quase dez minutos depois, foram recebidos com cordialidade, bem diferente do tratamento dado pela voz do Obelisco. Eram os guardas da cidade, e eles tinham a função de expulsar qualquer invasor, o chefe de segurança pediu desculpas pelo mal-entendido e levou Lunara diretamente para o Bibliotecario, o líder absoluto de Novalexandria.

    – Lunara da Sinagoga Sinistra, deixe-me ver o volume que você traz em mãos – sem sequer se apresentar, o Bibliotecário avançou ao ver o tomo nas mãos de Lunara.

    – Espere! Quem é você? – Ela entrou na defensiva afastando o homem.

    – Eu? Oras, eu sou o Bibliotecário, deixe-me ver logo esse volume escrito pelas suaves mãos de Matrona. – O homem não parecia em nada com um líder absoluto de tamanha cidade.

    – Seu nome, estamos em desvantagem aqui. – Saiu da postura defensiva e assumiu um tom agressivo, sabia que se o homem colocasse as mãos no livro, não teria garantia alguma de sair dali com o que viera procurar, tampouco de sair com vida.

    – Oras, meu nome? Você pode me chamar de Mindlin, o importante não é meu nome, mas sim o livro que você carrega consigo. Vamos, me deixe vê-lo! – A semelhança dele com Nial era impressionante, e pela primeira vez ela percebeu a armadilha que o velho tentara armar para ela.

    – Não, tudo a seu tempo – invocou a benção dada pela Matrona, e a rede de seu cabelo foi consumida pelas chamas em que se transformaram seu cabelo.

    – Usando de magia em minha presença? – O homem estava completamente desequilibrado, avançou vorazmente rumo ao pescoço de Lunara, mas parecia ter se esquecido de Draunir, que por sua vez, mordeu-lhe a mão e nocauteou os dois guardas que estavam atrás armados com um coice.

    – Solte minha mão sua criatura imbecil, solte ou irei mandar você de volta para a masmorra de onde você jamais deveria ter saído.

    – Acalme-se Mindlin, irmão de Nial. Do contrário meu amigo irá jantar a “carne exótica” de seu braço.

    Mindlin pareceu ser atingido por um golpe, acalmou-se instantaneamente como por mágica:

    – Como vocês souberam? – perguntou abismado

    – Que você é irmão de Nial?  Ou que foi você quem enviou para ele um livro sobre receitas exóticas para preparar uma montaria infernal e adquirir o poder de atravessar os mundos? Talvez você esteja falando na verdade da armadilha que seu irmão tentou preparar para mim, para que eu saísse definitivamente de seu caminho.

    Lunara deduziu tudo rapidamente, lembrou-se do livro impecável que foi encontrado com os dois mortos por Draunir, da forma como Nial exerceu seu poder para que ninguém mais o visse, tratando-o como um diário pessoal.

    Continuou a se lembrar, como se o próprio Peregrino estivesse falando em seu ouvido, de ter visto o livro nos aposentos de Nial quando lhe inquiriu sobre a prisão da criatura, do que leu aterrorizada naquele livro roubado momentaneamente por Eli sobre como sacrificar e absorver o poder natural de Draunir.

    E por fim, lembrou-se da mancha negra no olho direito de Nial, partilhada por Mindlin e que deixava claro o parentesco entre os dois. O resto foi a pura dedução lógica dela.

    – A armadilha que seu irmão pensou ser infalível contava com apenas uma falha, você sabia que se tentasse me matar eu iria queimar o livro e, que ele preferiria isso a entregar a você uma cópia dos preciosos estudos de Matrona, por isso me trouxe aqui pessoalmente, para certificar-se de que teria seu precioso livro antes que eu morresse – a labareda de seu cabelo se ergueu e Draunir soltou a mão do homem.

    – Agora você tem apenas duas opções, Mindlin, mate-me e perca de vez esse livro, ou faça a troca exatamente como foi solicitado pela Sinagoga Sinistra. E não pense em me trair –levantou os braços e a chama que estava em sua cabeça direcionou-se para as mãos após o livro cair no chão – Esse coração ígneo permanecerá aqui até que eu esteja longe e a salvo.

    Ela abaixou as mãos e a chama enfraqueceu se transformando em uma esfera alaranjada muito semelhante ao magma.

    – Entregue-me o tomo que eu vim buscar – tirou a lasca de pedra da mochila e arremessou para ele – fique com o livro a você foi destinado. Mas se algo acontecer comigo, esse coração irá explodir, e acredite, sua perda será irreparável.

    – O que me diz Mindlin?

    – Qual é a garantia de que você não irá destruir meus tesouros por vingança?

    – Ao contrário de você e seu irmão, eu fiz um juramento à terra de que eu lutaria para que a humanidade tivesse uma nova chance, essa é minha palavra e a minha honra. Portanto, se eu sair daqui em segurança, o coração dissipará e nada será perdido. Seria uma enorme perda para a humanidade perder o último reduto de sabedoria e conhecimento que pode construir um novo amanhã e devolver o nosso céu, mesmo que eu sabia que tal preciosidade está nas mãos de um homem mesquinho.

    – De forma alguma, Senhorita Lunara. – Uma voz calma surgiu atrás dela.

    – Peço desculpas pelo que Niaz fez aqui. – O homem passou por Lunara pacificamente, era muito mais velho que Mindlin, usava um par de óculos fino e andava auxiliado por uma bengala, parou de frente ao irmão de Nial.

    – Niaz, você achou realmente que conseguiria me deixar afastado desse assunto?

    – Senhor Mindlin…

    – Sem mais, acompanhe os guardas.

    Após o irmão de Nial ser levado pelos guardas, o homem reiterou suas desculpas mais algumas vezes, apresentou-se como o verdadeiro Mindlin, o Bibliotecário e disse que aquele que tentara se passar por ele era Niaz, de fato, irmão de Nial.

    – Agora me diga senhorita Lunara, como poderia recompensá-la por esse desconforto causado por um de meus funcionários? Peço apenas que não peça pela vida dele, embora ele seja o homem mais avaro que conheci em vida, ele é o melhor tradutor de algumas línguas. Acredite, ele será devidamente punido pelo que fez.

    Era sensível a diferença entre os dois, Lunara podia finalmente entender o porque daquele homem mesquinho não ter lhe convencido em momento algum de ser o Bibliotecário, já Mindlin sequer precisava se esforçar para que isso fosse percebido. Abriu os braços e recebeu de volta o coração ígneo, com isso retirava sua ameaça a aquele lugar.

    – A única coisa que peço é o tomo a que vim buscar. Tenho um pequeno aprendiz me esperando de volta na Sinagoga e uma boa amiga, a mesma que escreveu esse livro, presente para o senhor – Entregou-lhe com reverência.

    – Quanto a Niaz, apenas peço que não o deixe se comunicar com o irmão para avisar que o plano deles falhou, assim posso surpreendê-lo. Peço desculpas também por ter ameaçado sua cidade e todo o patrimônio construído.

    Mindlin sorriu, aceitou as condições de Lunara e entregou o tomo que ela viera buscar, junto a ele, entregou seis outras obras, que disse serem complementos muito úteis. Convidou-a para ficar na cidade pelo resto do dia para que se alimentasse e descansasse para a viagem de volta.

    Após alimentar-se foi guiada até um quarto enorme, onde lhe esperava Draunir, igualmente alimentado e satisfeito.

    – Por que você não me avisou que aquele homem era uma fraude? – Disse com mais decepção na voz que raiva.

    – Porque eu não sabia Lunara. Ou você acha que em minha estadia anterior aqui eu tive um tratamento desses?

    Ela sabia que podia confiar em Draunir, tudo passara a fazer ainda mais sentido, Niaz provavelmente soube da criatura e avisou a Nial que planejara tudo. Antes que dormisse pela exaustão, ficou feliz em saber que tinha feito um amigo e frustrado vários planos de Nial, mal podia esperar para voltar à Sinagoga.

    Na manhã seguinte foi levada de volta ao elevador por onde entrara em Novalexandria e ao chegar no andar de saída lá estava Mindlin ao lado de uma mulher:

    – Mais uma vez quero pedir desculpas a você e à Sinagoga Sinistra em meu nome e em nome de Novalexandria, sei que esses livros serão úteis, principalmente pela importância que eles carregam.  Mesmoque não tenha lido-os inteiros, de folheá-los já deve ter percebido sua importância.

    – Não há o que ser desculpado senhor. Mais uma vez agradeço a sua gentileza e hospitalidade e peço desculpas por qualquer problema que possamos ter causado – Reverenciou o homem em seguida montou em Draunir.

    – E quanto aos livros, o que achou deles?

    – São belos e se o senhor diz que serão úteis, acredito em sua palavra.

    – Mas você sequer os folheou? – O homem estava incrédulo

    – Sim senhor, folheei, mas como nunca consegui aprender a ler, não entendi nada do que está neles – Bem que Matrona tentara ensiná-la, mas jamais conseguira vencer a dislexia de Lunara.

    – Ouviu isso Guita? – perguntou à mulher – Essa bela senhorita não sabe ler. Mas ouça, volte quando for de sua vontade e iremos ensiná-la o significado maravilhoso do registro das palavras e como interpretá-los, pois sei que, agora, sua missão é outra.

    Lunara, em lágrimas, agradeceu a Mindlin, prometeu que voltaria oportunamente com Draunir e partiu de Novalexandria agradecendo ao Peregrino pela última vez, pois a voz dele, não mais sendo necessária, silenciara-se para sempre.

  • Bastardos, duas gatas e um V8 fumegante

    Bastardos, duas gatas e um V8 fumegante

    (preguiça)

    O Zeppelin Oriental cortava o céu com suas chamas, oriundas das paixões dos ricos e poderosos, gente que não precisava se esforçar nesse mundo tão estranho.

    Aquele era o único veículo que podia voar naqueles dias e foi nele que as meninas ouviram, pela primeira vez, as histórias sobre o mundo do passado, uma época no qual o céu era azul, nações existiam e a luz de todas as manhãs era tão brilhante que ninguém conseguia observá-la sem ter a vista ofuscada.

    Uma dessas histórias era a de que as portas do Inferno se abriram, dois mundos se tornaram um, mas apenas um deles estava preparado para isso. Desde esses dias o Zeppelin existe e os que controlam o mundo são Sete.

    Conhecidos por “Gregoraquinianos”, uma mescla amadora de “Gregório” e “Aquino”, dois homens de uma época mitológica que descreveram o que esses demônios representam, são a potência que subverteu a vontade do mundo e ditou a realidade desde então.

    Muitas eram as histórias contadas à beira da mesa de carteado, nos quartos chiques, ao lado da roda de roleta-russa legalizada ou mesmo junto à tenda dos Confrades das Máscaras, os mesmos que possibilitaram que eu relatasse essa história.

    Quando os Confrades das Máscaras embarcaram no Zeppelin foram tomados como uma nova atração. Alguns riram de suas máscaras enormes e de suas vestimentas estranhas, a última risada foi dada quando a máscara de um deles foi arrancada.

    Como príncipes bastardos, filhos dos demônios com prole humana, sequer eles sabiam quem eram seus pais, apenas partilhavam deformações assustadoras e uma língua que ninguém mais entendia.

    Numa das paradas do Zeppelin, na zona das gueixas pós-pagas de elite, duas meninas embarcaram, foram as primeiras a conseguir alguma risada dos confrades. Sevla encantava com seu ar infantil e maldade pura no olhar, Melangra, com seus lábios sempre avermelhados e o perfume exótico de outros mundos, contagiava.

    Elas não gostavam de trabalhar, jamais precisariam sendo a companhia mais procurada a bordo do dirigível. Fizeram seu lar no segundo andar em um quarto decorado por dragões serpentinos, com um mapa exato do céu do momento no teto. Demorou um pouco para que os clientes deduzissem que eram irmãs.

    Diziam gostar da antiga temática oriental e que essa era a essência do Zeppelin, por isso tinham sido tão bem aceitas. Uma vez, quando Sevla estava bêbada, disse algo sobre terem transado incansavelmente com o dono do lugar, não o dono do Zeppelin, mas algo sobre algum “espírito do lugar”.

    Príncipes sem coroa, poderosos sem renome, os Confrades com as viagens para lá e para cá outra vez foram deixando o dirigível, fixaram moradia em terras distintas e com isso as duas irmãs perderam pouco a pouco o prazer que viam em tudo na vida.

    Sevla demonstrou sua amargura colocando fogo em um cliente enquanto Melangra afundou-se ainda mais em seus mistérios. Sempre calada, comportava-se como uma esfinge.

    Vez ou outra um Confrade subia a bordo e por alguns dias Sevla voltava a ser uma mulher feliz fazendo companhia a eles por todo tempo. Eles não eram mais poderosos sem renome, passaram a erguer coroas com imponência que assustou a muitos.

    Os que sempre lhes respeitaram receberam suas honras, já aqueles que insistiram no passado em tratá-los como deformados ou tachá-los como escória, mesmo que em palavras não ditas, desapareceram no ar deixando para trás apenas propriedades como tributo.

    Melangra não se interessava mais pela Confraria, nutria sim um imenso respeito por eles, lhes era solícita e eles prontamente respondiam a seus pedidos. Mas cremos que a falta de interesse era resultado de seu crescimento e de sua personalidade se definindo.

    Conhecemos as duas em uma mesa de cartas, belas e jovens, quase morreram por conta de uma trapaça. Naquela época elas já tinham deixado bem claro que eram diferentes tanto por suas ações quanto por suas aparências.

    Sevla, a mais nova, sempre usava roupas provocantes que demonstravam sua personalidade passional e intensa, mantinha o cabelo, em tom loiro platinado, curto e sempre espetado, vestindo a carapuça de rebeldia e irreverência.

    Melangra tinha apenas dois ou três anos a mais que a irmã, mas sempre pareceu mais velha. Vestia-se de modo sofisticado, como uma antiga mulher de negócios, ar sedutor e dominante ao qual lhe faziam par os perfumes únicos e o cabelo loiro escuro cortado em Chanel, com franjas pontudas e longas.

    Uma roda de cartas não é uma boa roda de cartas sem tensão e tesão. É apenas um passatempo de quem não tem nada para investir nem muito a perder. Naquela roda de cartas, tensão era a moeda e o tesão era proporcionado pelas duas com maestria.

    Na época também era segredo para elas que fomos nós os responsáveis por organizar e liderar a Confraria, graças a isso, conhecíamos seus truques para roubar nos jogos aprendidos com os confrades.

    Talvez deixássemos que elas nos limpassem até o último cobre, mas Sevla adorava correr sob o fio da navalha e se apostou para cobrir a aposta em sua maré de azar. Estávamos em quatro naquela mesa, as duas irmãs, um bruxo jovem que tentava usar seus poderes para lograr a mesa, e nós, vendo cada passo e tentativa de trapaça.

    A jogada era chamada de “Três Espadas”, aprendida com a Confraria, levou o garoto a reconhecer a derrota e abandonar a mesa, com a previsão daquele cenário, nós sobrevivemos para a próxima mão e foi aí que Sevla se apostou.

    Melangra não escondeu sua surpresa e a tensão que o temor lhe causara, analítica e inteligente, ela percebeu que tinha algo de muito estranho em nossa pessoa e nos olhou com seus olhos azuis faiscando e com aquela boca vermelha e carnuda anunciou uma seqüência virtualmente imbatível

    Apostamos a nós também, Melangra conseguiu esconder a frustração após o choque inicial, mas o tempo preciso entre um segundo e outro que os mortais raramente conseguem perceber, eram como um mapa de reações para nós.

    Com a aposta aceita cortamos o terceiro e último ato das Três Espadas dando a elas uma saída honrosa, a irmã mais nova se entregou de vez ao tesão e a mais velha à tensão. Sabia que se nós abríssemos as cartas e revelássemos sua trapaça, as penas seriam severas.

    Não queríamos separar as duas irmãs, sabíamos que Melangra faria tudo para tentar manter essa união desde que as conhecemos e as observávamos de cantos escuros, com isso a aposta foi dobrada, Melangra também se apostou para tentar negociar a vida da irmã e acabamos por ganhar as duas.

    O dono do Zeppelin tentou negociar, ofereceu grandes quantias e privilégios para que elas não saíssem dali. Certificamos de que ele receberia quatro garotas novas prontas para aceitar seus objetivos, pontuamos ainda que, elas não seriam nada comparadas às duas irmãs, mas que no final do dia, o caixa lhe daria um motivo a mais para sorrir.

    Descemos no pouso seguinte e deixamos as duas fazendo suas despedidas. Encontraríamos-nos novamente dali duas semanas, quando o Zeppelin chegasse a Gólgota, nossa cidade. Era tempo suficiente para que elas terminassem de limpar bolsos para reunir uma quantia e tentarem negociar suas vidas.

    Os dias se passaram, o Zeppelin despontava no Horizonte como um ponto pequeno e distante, desceu lentamente no ancoradouro revelando seu esplendor. A cabeça de dragão que fazia frente à cabine de comando cuspiu um jato de fogo, as luzes externas se acenderam e pela primeira vez eu parava para notar cada detalhe daquela construção belíssima.

    O dono da embarcação se aproximou oferecendo uma “proposta irrecusável” para que deixássemos as irmãs ainda sob sua guarda. Vencido, ele voltou à embarcação enquanto pessoas subiam nela com bolsos cheios ou desciam com a vida por um fio. Então desceram as irmãs.

    Chamamos aquele momento de primeiro encontro, era a única forma de fazer jus à beleza de sua descida, irradiando felicidade e dedicação para aquela nova vida que as tomava por assalto, Sevla fingiu um sorriso e Melangra fez a oferta.

    Tomamos as mãos dela e as beijamos, a recusa foi feita olhando firmemente em seus olhos e aproximamos aqueles delicados e belos dedos de nosso coração. Ou do que seria anatomicamente o espaço para tal.

    Ela fechou os olhos e foi guiada pelo ritmo que reverberava ali dentro fingindo ser um coração, sentiu uma sinfonia antiga e amistosa que clamava a felicidade de sua chegada. Sevla não entendeu quando Melangra lhe deu um sorriso e disse que finalmente elas estavam em casa, custou a acreditar e somente o fez quando recebeu o mesmo tratamento.

    Elas eram bem diferentes, Melangra me conquistara rapidamente pela sua personalidade e beleza refinadas. Sevla, por sua vez nunca me atraíra, no entanto quando tocou meu peito, a reverberação tomou conta de meu corpo e mente, me deixando como um mero espectador. Belial encontrara uma amada.

    Seria errado dizer que ele vive dentro de mim, pois ele não é apenas um, mas sim Legião. Ainda, depois de tantos anos sem envelhecer, não sabemos mais quem vive dentro de quem, apenas que a personalidade Belial é a que tem por mais tempo repousado.

    O V8 fumegante nos esperava junto ao xamã que o conduziria. Antes que nos aproximássemos dele, as irmãs vislumbraram as Três Agulhas Negras, as enormes construções de Gólgota, perceberam os planos secretos de nosso coração e nos abraçaram cada uma de um lado. Sevla à esquerda e Melangra à direita.

    Menos de meia hora era necessária para ir do ancoradouro até a Agulha principal, uma viagem curta, feita lentamente para que elas vissem a extensão do sonho do qual passaram a fazer parte. Até o V8 desistir de funcionar.

    Mais de vinte minutos se passaram enquanto o Xamã fazia suas preces para que o V8 voltasse a funcionar. Riscou o chão, aspergiu sangue e saliva, mas nada fazia o veículo dar o menor sinal de movimento. Sua irritação era evidente, ajoelhou e iniciou mais uma série de preces, foi quando senti que já poderíamos ter andado e feito o que restava do caminho.

    Ele não era velho, talvez tivesse próximo dos cinqüenta anos, mas como todos os Xamãs, sua aparência escondia os prodígios de que era capaz com seu corpo modificado por uma magia estranha. Alguns diziam que eles na verdade eram não eram humanos, principalmente pela forma como lidavam com suas tão cobiçadas máquinas, mas eu sabia que eles respiravam e sangravam exatamente como qualquer outro mortal.

    A letargia tomou meu organismo, e apenas então percebi que algo de muito estranho estava acontecendo. Belial adormecia, sua voz não existia e nem sua presença. Fui tomado, pela primeira vez, por pânico e a verdadeira sensação de solidão.

    – O veículo não vai se mover?

    – Aguarde senhor, ele está tentando, mas uma força estranha está fazendo com que não consiga. – Não fosse a seriedade e o suor vertido pelo xamã, eu acharia que era piada ele referir-se à máquina como a um ser vivo.

    – Vamos andando garotas. – Dito isso minha força desvaneceu, esfreguei os olhos e vi que a distância, antes ínfima, se alongara por milhares de quilômetros. O mundo inteiro estava se transformando, e até mesmo as mulheres tinham sido tomadas por aquilo.

    No chão, Sevla já estava deitada e fazia uma cara de cansaço tão contagiante que era convite para deitar também, ignorar aquela terra vermelha e procurar um canto para descansar. Encostar as costas e esperar que o xamã restaurasse o comando sobre sua máquina não seria um grande sacrifício.

    Melangra resistia, já estava arqueada com as mãos em seus joelhos como se algo a empurrasse para baixo, forçando cada músculo de seu corpo a lutar contra a vontade de se jogar no chão.

    – Faz sempre esse calor terrível por aqui? – As palavras dela foram ditas de modo mole e quase sem fôlego. Mas do que ela falava? Gólgota nunca tivera calor como ambiente!

    Será que era esse o motivo, uma sensação de calor que eu não sentia desde minha vida humana? Não, elas eram humanas e não existia um motivo para que qualquer sensação dessas causasse tanto estrago. Pensar se tornara cansativo e o Xamã que estava há centenas de metros parecia já dormir.

    Cansaço, sono, moleza, letargia, conforto, tudo estava bem. Por quais motivos eu iria querer sair daquele lugar? Não existiam motivos para que eu me esforçasse em vida, ainda mais naquele mundo escabroso.

    A mão de Melangra vinha em minha direção, pareceu que demoraria uma centena de anos para chegar ao meu rosto, mas ainda assim mover-se para evitar o tapa não era possível, eu estava caindo, o universo escolhera que tudo aconteceria lentamente.

    Até que ela caiu na letargia e o tapa jamais chegou. Era a sensação da morte? Como minha vida não começou a passar na frente de meus olhos eu mesmo escolhi relembrá-la, a começar pela primeira memória que eu guardava: o assassinato de minha mãe e minhas duas irmãs.

    Eu ainda era apenas um garoto, meu pai um psicopata. Eu já corria dele por horas me escondendo e ainda assim ele me encontrava, hoje sei que foi Belial quem me protegeu quando fui encurralado em uma rua sem saída e vi a morte se aproximando lentamente, da mesma forma como estava testemunhando ao lado daquele V8.

    Seu último passo foi dado há alguns metros de mim, ele me vira ali indefeso e imóvel, pois a exaustão era o preço de ter abusado tanto de um corpo infantil. Pensei naquele momento em rezar para algum deus, mas não tinha crença nem tempo para isso.

    De uma garagem de uma velha construção saiu um V8 fumegante, diferente do vermelho que o xamã pilotava, preto com pintura de chamas em sua lataria. Arrebentou a madeira da garagem e acertou em cheio meu pai jogando-o contra a parede, deixando-o quase morto. Dois garotos de aparência angelical saíram do carro e sua simples presença já me dera conforto e confiança, me aproximei deles para agradecer:

    – Que legal, vamos passar por cima dele agora? – um deles disse perguntou.

    Aceitei o convite, entrei no carro e me deliciei com o som dos pneus passando por cima da cabeça daquele maldito, uma, duas, três vezes seguidas. Até que o que restara ali não tivesse sequer a sombra de um dia ter sido uma pessoa. Fui deixado na esquina de casa, naquela época existia polícia e ela já estava verificando a atrocidade que ocorrera em meu lar.

    Sem evidências que me protegessem fui preso pelo assassinato de minha família e levado para uma instituição de correção onde agonizei por longos seis meses, uma queda do qual eu ainda não tinha sentido o total impacto.

    Meio às disputas de poder dos maiores eu me tornara uma vítima, até que a morte me seguiu até aquele lugar maldito, como uma benção. Acordei no meio de uma noite e lá estavam os dois gêmeos do V8 flamejante, colocando fogo em cada um dos que me atormentaram ao longo daqueles seis meses de dor e terror, um deles viu que eu acordara e disse:

    – Fuja, nós cobrimos você!

    Eu não sabia naquela época, mas aqueles irmãos eram Belial, uma força tão antiga que remontava às épocas do paraíso. E o V8, sua paixão desde as primeiras influências nesse mundo, era a carruagem que ele escolhera para a nova fase de sua existência, para a melhor execução de seus planos e conexão com seu futuro recipiente.

    Voltei daquela sessão nostálgica e percebi que ainda estava entre os segundos de minha queda no chão devido àquela moleza, mas ao menos a velocidade do pensamento tinha se recuperado. Belial não estava em “casa”, ou se estava, permanecera dormindo. Ordenei a meus pulmões que recuperassem o fôlego e eles atenderam depois de anos sem comunicação de minhas ordens para meus próprios órgãos.

    Foi delicioso o ar respirado entrar como uma navalha gelada rasgando as narinas e as gargantas, meus olhos vidraram por um momento e a letargia sumiu. Era bom demais retomar o controle dos atos e do pensamento.

    As garotas estavam no chão em um transe orgasmático balbuciando palavras em uma velocidade mínima e quase sem força, a letargia as dominava e também ao Xamã. O mundo deixara de ser aquela imensidão quilométrica para cada centímetro, em Gólgota, ordenei ao mundo ao meu redor que revelasse a fonte da força.

    Ele estava lá, conseguira derrubar em seus sussurros cada um de nós ao torpor, mas não aos espíritos da terra, não aos que viviam em cada pedra e grão de terra, os verdadeiros servos de Belial. Belphegor, o Gregoraquiniano da Preguiça, um dos Sete Sacais, deitado sobre o capô do V8 com suas pernas cruzadas:

    – Elas sempre foram preguiçosas, não queriam trabalhar para ganhar o sustento. Preferiam abrir as pernas. Você se tornou preguiçoso depois de Belial, não dirigiu mais sua vida e nem se preocupou com o comportamento de seu corpo – Sua língua estalava no ar como um chicote cadenciado.

    – E meu irmãozinho, Belial? Oras, foi tão preguiçoso que recusou-se a andar pelo mundo, permanecendo em seu corpo fraco e patético.

    Havia verdade nas palavras de Belphegor, todas as escolhas citadas foram feitas em prol do menor esforço. Mas qual era a medida do que era preguiça, o que definia que o esforço não era o suficiente para a causa o qual ele era empregado?

    Como todos outros valores que reinaram na sociedade, era puramente arbitrário e referia-se aos que cercassem um indivíduo. Aquele maldito não era ninguém com a autoridade de impor o que era ou não preguiça apenas segundo sua ótica. Olhei para o Xamã ainda em uma pose de oração.

    – Esse não usa as próprias pernas para andar, prefere fazer negócios com espíritos de uma máquina.

    – Você é um babaca pior do que Belial descreveu – ri para provocá-lo – com esse conceito tão volátil posso dizer que você é preguiçoso por ter nos paralisado para evitar um combate.

    – Mas eu assumo minha preguiça… quando me convém. E agora que estamos apenas nós dois aqui  vou ensiná-lo como se dirigir a um ser superior – levantou-se do capô e apontou um dedo em minha direção  enquanto sua língua continuava a estalar.

    -Entendo, sou apenas um “receptáculo” não é mesmo? – eu sabia onde ele queria chegar.

    – Não se apresse, não tente dizer minhas palavras – demonstrou leve irritação – você é um receptáculo sim, nada mais que isso, pois teu corpo foi feito do barro e…

    – O seu foi feito do fogo, assim como o dos anjos foi feito da luz, não é mesmo?

    – Pare de me provocar, mortal, você está apenas fazendo com que eu torne sua morte cada vez…

    – Mais lenta, dolorosa, interminável e excruciante? – a cada vez que o interrompia a língua diminuía a cadência de seus estalos

    – Acha que só porque viveu como um imortal até hoje…

    – Não irei morrer em suas mãos enrugadas, preguiçosas e banais?

    – Como quiser, vou acabar com você agora! – a língua parou de estalar.

    Eu precisava apenas daqueles dois segundos e quando os consegui, com uma dentada arranquei carne, pele, veias e músculos de meu pulso. Era hora de Belial acordar e lidar com seu irmão. Mas não deu certo.

    – Meu irmãozinho vai continuar a dormir. – o espaço entre nós foi reduzido através de uma distorção dimensional, Belphegor não andara, mas estava na minha frente no momento seguinte, com o braço a atravessar meu coração.

    – Que droga – ri ao falhar daquela forma miserável – você pensou em tudo não foi?

    – Pensar? De forma alguma, acabar com um humano como você não exige pensamentos, planos nem tramas, é algo tão simples que se torna inevitável. – ele recolheu o braço e procurou por um coração que não estava ali.

    – Sentiu falta de algo?

    Ele fechou os olhos e para expandir sua percepção demoníaca quando notou uma distorção dimensional atrás dele, percebeu o que eu quisera fazer aquele tempo todo.

    Seus poderes para distorcer o espaço e o tempo, causando aquela letargia e finalmente a imobilidade eram fruto dos estalos feito pela sua língua em formato de falo. Ao fazer com que ela parasse de estalar, a possibilidade de propagar meu pensamento por Gólgota se apresentou.

    Embora Belial tivesse sido o arquiteto da cidade, era meu sangue que corria em cada construção e cada célula de meu corpo estava intrinsecamente conectada com tudo, até mesmo com a morada dos afilhados de Belial. Contatá-los naqueles dois segundos não requisitou quase nada de força.

    Atrás de Belphegor estavam vários Confrades, mais da metade dos Mascarados, todos movidos automaticamente pelo bastardo que ele fizera no passado e deixara viver, um ser com as mesmas capacidades e poderes dele, mas tutorado pelo irmão que ele fizera dormir.

    – Você não deveria estar aqui, bastardo. – falou de olhos fechados, irritado com a intrusão.

    – Imagine, meu pai, que eu o deixaria esperando. Sei o quanto sua preguiça é lendária e como cada movimento é feito tão raramente. – Um dos mascarados disse aquilo com uma voz tão grossa e forte que parecia o barulho de rochas explodindo.

    Belphegor percebeu que aquele fora o último erro de sua existência. Tentou deslocar o espaço ao seu redor para escapar, mas ao olhar para baixo viu que a terra se tornara sólida como âmbar, na forma de um círculo mágico que não estava em livro algum, pois todos foram cuidadosamente destruídos no momento de ascensão.

    – Onde você arrumou isso? Eu destruí pessoalmente todos os livros que…

    – Continham esse círculo e todas outras informações que poderiam facilitar a destruição e controle de cada um dos sete, não é mesmo? Eu te apresento, meu pai, um computador portátil – retirou de seu bolso e mostrou um aparelho de visor luminoso onde estava o círculo descrito, digitalizado de um dos raros livros que o possuíam integralmente.

    – Tecnologia, eu destruí tudo…

    – Que você conseguiu lembrar não é mesmo? Mas somos apenas humanos e bastardos, jamais pensaríamos em juntar trinta desses para montar um que funcionasse não é mesmo? E ainda, nunca teríamos a brilhante idéia de vasculhar os restos de uma velha biblioteca, encontrar CDs, Disquetes e outras formas de armazenar informação que pudessem conter o que foi completamente digitalizado no começo do século… não é mesmo?

    Belial acordou, senti minhas forças de volta quando ele regenerou rapidamente o ferimento de meu corpo, antes que eu encontrasse a morte final, em seguida, se afastou daquele círculo.

    – Olá irmão, vejo que foi enganado por um “simples homem”. Talvez não tenha passado pela sua cabeça, mas achou realmente que eu me uniria completamente com um idiota incapaz de solucionar um pequeno problema como você?

    – Belial, o que você…

    – Cale-se, meu “irmão”. Você cometeu o erro de me atacar em Gólgota, a minha cidade. O final ideal para sua existência será poético, bíblico e visceral, sem qualquer vestígio de Preguiça.

    – Sirvam-se, meus afilhados! – meu corpo abriu os braços sob o controle de Belial que proferira com prazer as últimas palavras para seu irmão.

    – Agradecemos, padrinho. – Sussurraram em uníssono.

    O Bastardo retirou sua máscara, mostrou seu rosto que até então era desconhecido pelo seu próprio pai, talvez a segunda ou a terceira arcada de dentes de tubarão tenha feito ele entender o que aconteceria.

    Sem se importar, tomamos Sevla e Melangra nos braços, o Xamã enfim teve suas preces atendidas e o V8 voltou a funcionar, abandonamos a cena de fratricídio e canibalismo aproveitando o que restara da viagem.

    Belphegor não mais existia, o equilíbrio dos Sete fora balançado e um filho bastardo teve acesso a toda sua herança sob o patrocínio de seu tio, Belial. A poesia proferida foi dada pelos gritos do Gregoraquiniano sendo mutilado e consumido pela própria prole.

    Longe, com o vento no rosto conhecendo as paisagens de Gólgota, Melangra e Sevla compreendiam a extensão de nossos planos vendo as Três Agulhas se aproximando, sua nova casa, seu novo lar. Elas deixavam os bastidores para se tornarem as estrelas principais de nosso sonho.

  • AxisMundi, a herança de Simha

    AxisMundi, a herança de Simha

    (soberba)

    Sentou-se em uma cadeira acabada, velha e feia, ainda assim forte e confortável. Sua casa era modesta, nunca primou pelo. Sentado na varanda, observava as colinas ao longe, belas e ancestrais. Os olhos percorreram o horizonte sombrio enquanto suspirava, lembrou da época em que o Sol ainda era visível, quando a Mortalha não existia. Sentiu o cheiro do pão no forno e riu da ironia de ter sentado.

    Voltou, pôs a mesa, toalha rendada, lembrança do enxoval de casamento, um pequeno pote de manteiga, o último que lhe restara, e pão quente espalhando o aroma de alecrim pelo ar. Bebeu um gole de café que renovou a energia de seu corpo. Cortou o pão e espalhou por ele uma quantia generosa de manteiga. Serviu-se.

    Assoviou e dois passarinhos avermelhados pousaram na mesa, receberam um pouco de farelo e se deliciaram com aquele banquete. Era ciente de sua boa vida e de como era um homem afortunado.

    Satisfeito, sacou um pedaço de fumo em corda e começou a enrolar um cigarrinho. Antes de acendê-lo, pingou algumas gotas de um pequeno vidro e por fim riscou o fósforo. Com a primeira tragada sentiu na garganta o frescor do orvalho da manhã, aquele mundo podia ser ao mesmo tempo tão feio e tão belo, mas completamente diferente de cinqüenta anos atrás. A primeira onda veio.

    – Olá pai, benção – era a primeira vez que o filho falava com ele desde a morte da mãe.

    O pai olhou para o homem e viu nele apenas a sombra do garoto de outrora. Percebeu que fizera seu caminho na vida além daquelas montanhas e retornara, talvez para relembrar seu passado visitando o velho pai que não tinha muito a oferecer. Não era mais um garoto, mas sim um grandalhão cuja altura passava muito de dois metros. Sorriu para a figura que se curvara à sua frente, deu-lhe a mão que foi beijada e respondeu:

    – Que Eles te abençoem, meu filho.

    Lágrimas corriam dos olhos daquele brutamontes cujas garras tão afiadas podiam trespassar o corpo do velho pai, ele as retraiu e limpou as lágrimas de seu rosto leonino, se ajoelhou sentando nos próprios pés, ficando ainda assim na mesma altura que o ancião e tomou suas mãos abraçando-as com carinho entre as suas.

    – Desculpe por ter me afastado, pai, eu o fraco naquela época, quando na verdade o fraco fui eu por não suportar a morte de minha mãe, a mulher que por tanto tempo esteve ao seu lado.

    A risada carinhosa do velho quebrou aquele clima sepulcral, ele tirou as mãos do meio das de seu filho que fizera isso demonstrando ter força e poder para protegê-lo e as envolveu nas suas, bem menores, finas e terrivelmente maculadas pela idade.

    – Não existe culpa aqui, você seguiu o seu caminho e vê-lo novamente é felicidade o bastante para esquecer discussões inúteis. O passado apenas é isso, passado.

     Sentindo as mãos acolhidas e o calor terno de seu velho pai, a emoção do reencontro arrematou o que restava de receio, deu-lhe um grande abraço e abriu um sorriso que, com suas enormes presas felinas, assustaria qualquer outra pessoa, mas ao pai conseguia apenas fazer com que um leve suspiro fosse dado.

    – Você cresceu, meu filho, mudou tanto que apenas seu pai poderia reconhecer aquele garoto com cabelo de palha. Arc… – foi interrompido antes que disse o nome de batismo da prole.

    – Me chamo Simha agora, pai. Faz parte do que me tornei. – Disse em tom de reverência.

    – Entendo, lembro de um desenho de minha época, com um filhote que teve de fugir para se tornar um verdadeiro Leão, só então pôde voltar para casa e tomar seu lugar de direito. Ele tinha o mesmo nome!

    – O nome desse leão era Simba, pai, e eu não vim tomar lugar algum, apenas consegui enfrentar meu próprio orgulho e decidi prestar uma visita a um ente amado de minha primeira vida.

    – Simha, Simba, é tudo parecido. E como isso aconteceu? – apontou para as garras.

    – Uma longa história pai, envolve um deus caído dos céus, quase morto. Um pouco de feitiçaria antiga e muito de procedimentos científicos que aterrorizariam os nazistas mais inescrupulosos.

    – Uma longa história pede um longo gole de meu “desincrustante de ossos”.

    – E você ainda fabrica isso pai? Aposto que até guarda no mesmo lugar. Não se levante, eu vou pegar. – O sorriso do filho revelava um filhote, e naquele momento o pai percebera a verdadeira felicidade de ser pai.

    – ACORDE, IDIOTA!

    Com um soco no queixo o velho foi jogado para longe de sua mesa a céu aberto, ainda atordoado com as lembranças proporcionadas pela onda química, tornou a olhar para a Mortalha, tentando fazer a cabeça parar de girar.

    Tentou se levantar, mas o corpo não respondia tão bem após a oitava década de vida, sentou-se ali mesmo no chão de grama não cortada e limpou o sangue que corria da boca. Cuspiu o pedaço de dente solto e olhou em direção a seu agressor.

    Alta, mas bem menor que seu filho, a criatura à sua frente possuía uma beleza intrigante, andrógina, magra e alta. No lugar de cabelos subiam labaredas de fogo que davam à sua pele metálica tons hipnotizantes.

    – São vocês então. Minha resposta continua a mesma. Não irei ajudá-los nem mesmo morto! – Disse as últimas palavras cuspindo sangue.

    Quando a vista voltou a obedecê-lo, viu que eram quatro as criaturas, três delas eram iguais em sua aparência andrógina metálica que mal podia ser descrita como humana, mas a quarta ganhava em todos os aspectos se estivesse em uma competição de beleza estronha.

    – Lúcifer!

    Aquele que um dia sentara ao lado de Iavé, que caíra por desejar demais, estava à sua frente com seu corpo semelhante ao de um centauro, com seis patas, imponente e arrogante. Plumas como a de pavão saiam de suas costas formando asas de enorme envergadura logo atrás de seus braços. O rosto de criança mimada com seis olhos, não chamava tanta atenção unicamente pela série de chifres variados que brotavam de sua cabeça, entrelaçando bode, touro e outras criaturas inexistentes antes da Mortalha.

    A presença dele indicava que certamente eles o levariam dali, não importando se fosse vivo ou morto. Lúcifer tinha planos de como utilizá-lo em sua guerra interminável, ainda desejava capturá-lo para forçar o filho, Simha, a abandonar a linha de frente que tanto causara problemas nos últimos meses. Aquilo era novo e deixava claro que medidas desesperadas tinham sido tomadas.

    – Relembrando o encontro com aquela monstruosidade que tu chamas de filho? O pecador que ousou tomar o fruto da carne do altíssimo para si? Tua ciência seria mais bem aproveitada em minhas fileiras, lhe garantiria longa vida e riqueza, não um pedaço podre de madeira na terra de ninguém! – Lúcifer rogou aquilo e a cada palavra proferida sua expressão se transformava.

    – Sempre soube de sua arrogância, Satanael! – percebera quem ele era na verdade – Mas sinceramente, atacar um pobre octogenário em sua própria terra, pois não se trata de “terra de ninguém”, foi além das mais estúpidas coisas que você fez em sua existência

    A comitiva enfureceu-se revelando feições semelhantes à dos esqueletos pútridos que eram por trás daquela máscara de ilusão, esticaram suas asas translúcidas como as das borboletas e pularam em cima do velho em ódio pela ofensa feita a seu mestre.

    Mas aquela era a terra dele, e um homem que chegava aos oitenta anos naqueles dias não era uma corça indefesa. Com um assovio, uma criatura humanóide, feita de bulbos e raízes levantou-se do solo e emitiu um grito estridente que fez com que os três caíssem na terra. Ajoelhados, impotentes tentando se proteger daquele som.

    Gritavam sem que pudessem ser ouvidos, sofriam sem que fossem auxiliados, resistiram em agonia até que as labaredas que tinham por cabelo se esticaram tentando fugir da rajada sonora e explodiram junto à cabeça em fogo e sangue.

    O rosto de Satanael e parte de seu corpo estava coberta de sangue e algo que talvez fosse os miolos dos mortos. A criatura continuava desferindo seu uivo metálico e cortante. O demônio inclinou levemente a cabeça e a criatura explodiu dando fim ao som.

    Abriu a boca e dela saiu uma língua sangrenta, cheia de ventosas e longa como uma serpente, passando pelo corpo e limpando os vestígios de sangue, terra, raízes e tudo mais que tivesse maculando a beleza de sua imagem. A criança que lhe dava rosto tornou-se monstruosa, embora não fosse ele, Lúcifer, era certamente um Gregoraquiniano, um dos Sete malditos que controlavam o mundo desde a época que a Mortalha cobriu o Sol transformando todos os dias em tardes nebulosas.

    – Uma Mandrágora. Devo lhe dar meus parabéns pela criatividade e habilidade em cultivar uma de tal tamanho, tão obediente a ponto de morrer por você. Mas de onde vieram esses – apontou para os três corpos que caíram sem cabeça – eu posso trazer muitos mais – abriu os braços e o espaço atrás de si se dobrou revelando um lugar longínquo, onde exércitos de criaturas estronhas como aquelas se enfileiravam.

    – Mas não – cruzou os braços e o espaço fechou atrás de si dando lugar à antiga paisagem – eu irei levá-lo comigo para que perca um pouco de tua esperança e arrogância nas mãos de cada uma delas, para que então perceba a diferença que existe entre um DEUS e um homem.

    – Acabou seu espetáculo, Satanael?

    -NÃO… ME… CHAME… POR ESSE… NOME!

    – Você prefere qual, enjeitado do papai, bafo de enxofre, escória de anjo… RASCUNHO da Humanidade? – O velho sabia que ele não era Lúcifer, e sim uma criatura que tomara para si tal título na ausência do verdadeiro dono.

    Chamá-lo de mal encarnado, ou mesmo de “grande mentiroso” causaria apenas risos, apostava que compará-lo a um rascunho, das criaturas que tanto subestimava, conseguiria fazê-lo descer do pedestal.

    A confirmação veio junto a um coice que afundaria seu peito, não tivesse o velho sido tragado pela terra no exato momento. Funcionara perfeitamente!

    Esconder-se na terra não o retardaria por tanto tempo, mas garantiria a diversão de ver o demônio enfezado. Logo, Satanael começou a cuspir rajadas que abriam enormes buracos no solo, berrava ensandecido sobre como sua forma era bela e superior a toda a humanidade.

    O velho saiu da terra em um lugar afastado e gritou:

    – E ainda assim tem o rosto de uma criança, RASCUNHO! – E voltou a ser engolido pela terra mudando sua localização.

    A cada novo grito o demônio denunciava sua posição, amaldiçoava todos os homens, seu próprio pai e, principalmente, aquele velho que ele iria esmagar sob seus majestosos cascos adamantinos. E a cada nova maldição, o velho controlava a terra para que o levasse para longe, assim ele poderia fazer por anos se ainda tivesse o fôlego e o poder de sua juventude.

    Logo, o pulmão intoxicado começou a falhar, estava maltratado demais pelo fumo e pela química que ele mesmo extraía de seu cérebro. Era ela que sempre pingava em seus cigarros, lembranças vívidas que sempre revisitava.

     Como era comum, quando o ar começava a lhe faltar, o cérebro se assustava e causava um flashback. Naquele momento graças à química que ainda estava em seu organismo, a lembrança foi a do dia em que tornara a ver sua prole.

    – Eu preciso guardá-la e nutri-la, meu filho. Por isso não posso ir com você, foi meu juramento aos últimos sobreviventes do Grove, o grupo de minha fé.

    – Entendo você agora pai, pudera ter entendido antes de ir embora achando que você permanecia apenas por não conseguir se livrar da memória de minha mãe.

    – Seu destino era longe daqui, nem mesmo nossos ancestrais poderiam imaginar que fosse possível acontecer algo como o que aconteceu com você. Nesses tempos de desolação, você é uma das poucas luzes que conseguem atravessar a Mortalha prometendo um novo amanhecer.

    – Não pense assim meu pai, estou longe de ser um ideal de pureza e bondade como você me julga. Minha aparência deixa isso bem claro.

    – Continua tolo, possuí um Deus em sua carne e em seu sangue e não compreendeu ainda que bondade absoluta é uma ilusão e que pureza verdadeira é algo que não conheceremos nesse mundo? – Riram junto após essas palavras, quando o filho entendeu por fim seu papel nas tramas do destino.

    E então Satanael conseguiu atingir a proteção onde o velho se encontrava. O pulmão ávido por uma dose de ar fresco re-oxigenou o cérebro quando ele fora cuspido pela terra e a lembrança foi interrompida. Arfava, com dificuldade em respirar, fazendo com que pela primeira vez temesse pela própria vida, mas morreria com seus segredos.

    – Me dê uma razão para que eu não o mate de vez aqui – e apontando um dedo, fez com que o corpo do velho flutuasse no ar, tirando o do contato com a terra que tanto lhe dava poder – apenas uma razão para que eu não faça de você o mesmo que seus antepassados faziam dos velhos mórbidos, inúteis e caquéticos como você, destroce seu corpo em pedaços e alimente a terra com eles!

    Não fora tempo suficiente para que o velho recuperasse o fôlego, mais uma vez o oxigênio faltou em seu cérebro e a alucinação visual o atacou revelando o que ele tentara proteger por tanto tempo com sua vida.

    – Ela é tão velha assim, papai?

    – Sim meu filho, esta árvore é mais velha que a humanidade, não duvidaria que fosse ainda mais velha que os deuses.

    – Você disse que ela fora destruída pela mão do homem e transformada em quinquilharias baratas, como ela pode estar assim enorme e tão viva?

    – Foi esse meu juramento para o Grove, Simha, meu juramento era o de que eu protegeria com a minha vida se necessário, essa árvore que foi trazida de volta ao mundo dos vivos com o sacrifício de cada um de meus irmãos e irmãs em fé. Incluindo sua mãe.

    – Então não foi um suicídio?

    – Nunca algum de nós cometeria suicídio, meu filho, a vida é a coisa mais sagrada para nós desde o tempo de nossos ancestrais. Todos eles sacrificaram-se para que a árvore pudesse ter uma chance, para que pudéssemos corrigir o erro feito pela mão do homem.

    – Tantas vidas por apenas uma árvore, o que a faz ser tão importante?

    – Não sabemos exatamente como aconteceu a abertura entre os mundos, aquela que fez com que os Gregoraquinianos conseguissem invadir nossa terra com todo seu poder e fazer com que toda força sucumbisse, mas sabemos que essa árvore era o que mantinha a porta entre os mundos fechada. – Deixou de encarar o filho e as palavras que se seguiram, fluíam através dele diretamente da própria árvore.

    “Do corpo dos mortos eu me alimentava, separando, com minhas raízes, os mundos. A sabedoria dos homens da terra tratou de transformar o solo que me cercava em um cemitério, nutrindo com energia da vida, minhas raízes que afastavam a morte.

    Mas o homem perdeu-se da Terra, perdeu-se do céu e das estrelas e olhou apenas para a própria mão, e perdido admirando sua própria existência eliminou aqueles que ainda tinham a sabedoria na busca insana do que poderia fazer, pela simples possibilidade de poder fazer.

    E essa mão voraz nãose contentou em subverter tudo que movia e respirava, ela também teve de submeter o que era mais velho que os próprios deuses deles, que não se movia por pura gentileza para que a humanidade fosse possível.

    Eu fui então arrancada, minha vida consumida para que o homem tomasse mais um espaço de terra sem se perguntar o porquê daquela terra ser intocada por tantos milênios que a mente não podia calcular. Privada de minha vida e de minha função, a ponte entre os mundos enfraqueceu, dessa forma os poderes que estavam trancados do outro lado, podendo apenas influenciar mentes frágeis e débeis, conseguiram influenciar aqueles que possuíam o sangue necessário.”

    – E assim, de alguma forma, eles arquitetaram e conseguiram a abertura da ponte entre os mundos, para que não mais dependessem dos que os buscassem voluntariamente, que sacrificassem sua liberdade em troca de felicidade mundana e material. – O velho voltou a si, ciente de tudo que a árvore dissera através dele.

    – Você entende agora, meu filho, a razão pela qual sua mãe e todos meus irmãos e irmãs na fé sacrificaram a própria vida. Entende o motivo pelo qual seu pai jamais deixou essa terra?

    – Sim pai, finalmente eu entendo.

    Esse teria sido o último pensamento da vida daquele velho quando os pulmões não tiveram mais força para puxar o ar e fazer com que todo o resto do organismo voltasse a viver. Esse teria sido o último pensamento se Satanael não estivesse mais uma vez vislumbrando a mente das criaturas que tanto subjugara, que tanto subestimava em sua existência. Era uma oportunidade com a qual ele jamais contara, e por esse motivo, trouxe o velho de volta à vida.

    – Não será sua hora ainda, velho, você será mais útil para a minha Glória do que jamais sua patética existência sonhara. Vive e anda, pois das cinzas que são queimadas em meu nome, eu te trago de volta à vida.

    O retorno do mundo dos mortos através de poder demoníaco é tão bom quanto voltar através do poder divino.  O corpo expurga todos os males e se recompõe alcançando a perfeição do ser. A diferença básica entre os dois processos é a dor.

    Como a mitológica fênix que renasce das cinzas, voltar à vida é como ser consumido em chamas. O velho vivera sua vida plenamente jamais imaginando que isso aconteceria, assim como nunca sonhara que um dia seu filho se tornaria a coisa mais próxima de um deus. Aceitou a dor de bom grado, mesmo sabendo que ela era prenúncio de um sofrimento maior nas mãos de Satanael.

    – Recomponha-se agora – disse o demônio ao homem que rejuvenescia na sua frente, vomitando para fora de sua existência o conhecimento sobre o caminho do mundo dos mortos, como era correto para os seres vivos – você ainda sofrerá mais se não me levar até essa maldita árvore.

    O homem ainda flutuava impedido de tocar a terra, de onde poderia com a juventude recebida extrair força para ao menos escapar de seu algoz. Sabia que agora que Satanael conhecia a existência da árvore ele faria tudo para descobrir seu paradeiro, e graças a seus poderes ele certamente seria bem sucedido nessa empreitada.

    – Lá, após aquela colina, você verá uma árvore negra, imensa e solitária em uma clareira. – Apontou para o norte.

    – Vamos juntos, eu ainda irei saborear o terror em seus olhos quando vir essa maldita árvore queimando completamente e sumindo da existência. – O triunfo de Satanael fizera com que seu rosto de criança assumisse um sorriso de maldade, e seguiram rumo ao ponto indicado.

    A Árvore de fato encontrava-se após a colina, era apenas a sombra da majestade de outrora, não tinha mais de dez metros de altura, contra os mais de duzentos em sua época áurea, mas ainda assim ela representava uma ameaça ao domínio dos Gregoraquinianos.

    À primeira vista, Satanael lançou uma rajada de energia infernal que deixou em seu rastro terra árida e amaldiçoada, repleta dos urros de agonia dos que tombaram para lhe fornecer poder, no entanto a rajada ricocheteou em direção à Mortalha. Ele só precisava se aproximar mais dela.

    De frente ao objeto odiado, Satanael viu que a árvore era rodeada de espíritos, eram eles os irmãos e irmãs do Grove que sacrificaram suas vidas para dar aquela esperança aos filhos que deixaram para trás. Um dos espíritos estava ajoelhado, exatamente no ponto onde a rajada ricocheteara.

    – Vocês tentarão proteger essa porcaria até o fim de suas existências? Que assim seja! – Gritou com o orgulho e a vitória como manto.

    Os espíritos estavam realmente prontos para cessar suas existências em prol da proteção, e Satanael estava tão obstinado quanto eles pela sua destruição. Seqüências de rajadas foram lançadas pelo demônio, quando ele percebeu que um dos espíritos se levantara abriu suas asas em busca de seu verdadeiro poder.

    Por fim conseguiu destruir o primeiro espírito, e o segundo, o terceiro e assim sucessivamente até o décimo, então percebeu que seu poder não seria o bastante para destruir todos eles naquele momento. Seus olhos se voltaram para o homem e viu que ele encarava fixamente a imagem de uma bela mulher. Sabia agora como forçá-lo a revelar-lhe o segredo para sua derradeira conquista.

    – Acabou Mael, você irá me dizer como destruir essa árvore ou o próximo espírito a ser reduzido a nada será o de sua esposa. Acabou nosso jogo de gato e rato, ou deveria dizer de um leão e corça? – Sorriu triunfante vendo o desespero no olhar de Mael, o homem que fora velho e experimentara o rejuvenescimento.

    – De Leão e corça seria melhor.

    As garras de Simha brilharam com um ar sanguinolento. Aquela a quem ele ameaçava ceifar a existência era sua mãe e, Satanael, tomado pela soberba, jamais se preocupara em visitar as lembranças completas de Mael. Se assim tivesse feito, saberia que o filho estava dormindo ali na velha casa, após ter feito um pão para seu velho pai.

    O primeiro golpe do Leão enterrou sua pata no flanco de Satanael sem que ele tivesse sequer tempo para reagir, o sangue jorrou na cara de Simha pintando seu rosto para a guerra, mas o demônio não teria uma guerra. 

    – A cada rajada de energia eu tinha de agüentar o impulso de sair da casa e pular em seu pescoço. – rasgou o flanco direito do corpo do demônio levando junto duas patas.

    – Matar meu pai não foi o bastante, não é mesmo? – agarrou dessa vez uma das asas do demônio – você teria vivido para lutar outro dia se tivesse feito apenas isso, eu não seria idiota de enfrentá-lo. Estava ciente do valor de minha vida e de como meu pai estava pronto para ser sacrificado se assim fosse necessário.

    – Saber sobre a existência da árvore não foi o bastante – puxou com toda sua força arrancando a asa de pavão que já estava coberta de sangue – você precisava saber sua exata localização e queimou ainda mais poder para trazer meu pai de volta à vida.

    – Prudente teria sido confirmar a existência da árvore – atacou o peito do demônio que expelia mais rajadas ainda sem direção – e ter ido EMBORA – puxou a garra arrancando o que seriam tripas e outros órgãos – para voltar depois, com um plano para destruí-la.

    – E então você mais uma vez falhou, achando que poderia destruir o espírito daqueles que sacrificaram suas vidas, para proteger algo que você teme – encarou-o de frente, segurando em seus chifres de bode, os mais protuberantes – e extinguiu o poder que ainda me fazia temê-lo.

    – Mas veja, Satanael, você no fim das contas foi dominado pela Soberba, e não pôde sequer se defender – arrancou os chifres que vieram com parte do rosto de criança – de uma monstruosidade.

    Simha estava coberto de sangue do demônio e o corpo tombara à sua frente, ainda vivo, mas incapaz de fazer qualquer coisa que não fosse sofrer.

    – E você é tão – chutou a cara dele amassando ainda mais o rosto deformado – IDIOTA – chutou novamente – que deixou meu pai tocar a terra.

    – Se assustou ao ver o Leão – ajoelhou-se e pegou um dos braços arrancando-o vagarosamente enquanto dizia – e agiu exatamente como uma corça, perdendo o objetivo e permitindo que ele executasse em você a vingança da terra.

    O único olho de Satanael fechara, o corpo estava completamente disforme e não remontava em nada a beleza clamada outrora pelo Gregoraquiniano. Estava vivo, mas sem poderes, sem força alguma, podia apenas amaldiçoar a si mesmo por cometer tantas falhas em algo que poderia ser a garantia do poder e do domínio eterno.

    – Acho que agora não posso mais chamá-lo de pai, pois você está mais jovem que eu. – Simha sorriu como um Leão sorriria por ter festejado o banquete de sua vítima.

    – Me chame de Mael então. Ou de “amigo”, se preferir, Simba!

    – Ora, é SIMHA!

    E assim os dois olharam ao longe o espírito da mulher que fora mãe e esposa, que não mais tinha consciência ou memórias, apenas permanecia em essência ali guardando o que mais importava, o que daria esperança para a humanidade.

    – Como você conseguiu chegar tão rápido? – A dúvida lhe incomodava.

    – Eu não me esqueci de seus ensinamentos, parte de mim também é fruto dessa terra. Senti a energia do demônio se esvaindo e o chão se abriu como nos velhos tempos, para que eu salvasse o filho favorito “dela”.

    – Hmmm, o que fazemos com esse lixo, Simha? – apontou para o corpo no chão.

    – Aguarde Mael, meu sócio virá em alguns dias e, acredite, ele vai saber bem como cortar essa carne e fazer com que ela sirva para nutrir a Árvore. Apenas assim poderemos pensar em movê-la de volta para seu lugar.

    – E o que te dá certeza disso?

    Simha cruzou os braços, encarou a Mortalha e disse:

    – Ele virá com seu Cutelo de Prata!

  • Cutelo de prata e a questão de Dandara

    Cutelo de prata e a questão de Dandara

    (luxúria)

    Das quatorze placas decoradas que vi nos últimos quilômetros não entendi nenhuma.

    Não estavam escritas em um alfabeto que eu conheça, o que não é estranho já que conheço apenas o alfabeto comum do meio no qual fui criado, entre uma “parede babilônica verborrágica” que exaltava a individualidade da alma, e uma “falta complexa de autoamor” para quem tudo era sempre belo.

    As placas com tantos símbolos estranhos eram leiloadas no centro da cidade velha, logo depois do rio. Tê-las em suas propriedades representava alguma coisa que eu não pudera captar ainda pela distância esquizofrênica que mantive dessa sociedade.

    Meu pai era a “parede babilônica verborrágica”, dotado de uma pan-cultura pós-erudita que mesclava conhecimentos almejados pelos herboristas divinos e genéticos de esquina, pelos xamãs dos V8 e os confrades das máscaras. Ganhou bastante dinheiro enquanto manteve-se como um ídolo, impávido e inalcançável. Perdeu tudo quando tentou se humanizar.

    Veja que, mesmo meu pai sendo um ás da cultura, jamais me proporcionou alguma erudição, dizia constantemente que não tinha filho, pois qualquer filho que fosse por ele parido seria um ideal, algo oriundo do reino superior das essências inefáveis. Sempre me achou meio lerdinho pra me proporcionar algum benefício.

    A esse ponto já podem imaginar que a “falta complexa de auto-amor” foi minha mãe, uma suicida obscura que escolheu seu momento exato para deixar esse mundo. Levava sempre uma bolsa cheia de badulaques, presentes dados pelas suas tias, amigas, irmãs e pessoas que em falsidade sempre sorriam quando perguntavam como iam as coisas.

    Nunca foram bem, e elas sabiam, mas não queriam se enfiar naquele meio. Mamãe trocou alguns dos badulaques em uma pista de velocidade, dei depois falta pela havaiana à corda que bamboleava uma saia de folhas, e escolheu um abençoado V8 verde.

    Disse que queria sentir o aroma de gasolina e o da borracha queimada. Duvido que tenha sentido algo quando se chocou com a parede das lamentações que barrava o rio. Duzentos e cinquenta quilômetros por hora não dão luxo nem permissão dos sentidos.

    Não foi esse o motivo da humanização de minha figura paternal. Ele conseguiu esquecer rapidamente a dor social entre um baseado de melado budista e o rebolar assíncrono de uma gueixa pré-paga. Uma branquinha que conseguiu fazer o pé de meia com o velho. Se bem me lembro, seu nome era Holda. Ou Helga, na verdade não importa.

    Sua humanização aconteceu quando ele deixou o patamar iconoclasta para usufruir do fruto acumulado de seu burgo. Nessa época, conheci Dandara, uma negra de traços finos que estudava para se tornar uma gueixa pós-paga. Aquele tipo que proporciona garantias ilimitadas para quem pode arcar.

    Perdi alguns quilos de juventude em seus quadris. Para ela, tudo era apenas treinamento para chegar à milhagem necessária para o próximo grau de sua estranha pirâmide social. A cada gozo, eu só me preocupava em como fazer para tirá-la de cima de mim. Nunca entendi essa necessidade por prazeres intermináveis com intuito de superar o tempo, a necessidade por algo que sublimasse o puro prazer do momento.

    Soube da morte de meu pai enquanto cortava carne para tentar comprar uma jade para Dandara. Deram-me a notícia junto a uma carta de débitos que eu herdara. Débitos que foram feitos na mesa de uma roda de Roleta-Russa legalizada, a bordo de um Zeppelin oriental. Numa rodada do prazer para poucos, o velho apostou mais do que tinha. Dívida herdada é uma merda e eles enfiam ela dentro de você se não for paga.

    Logo após receber esse presente, levantei o cutelo com poesia, imaginei que o pescoço do frango era o pescoço de meu pai. O frango não fez barulho nenhum depois do golpe. Quem quer que tenha comido aquele sacrifício libado a deuses não nomeados provavelmente ganhou um câncer na bexiga, o mesmo que meu velho, o mijão, escondera até não poder mais.

    Dandara gostou da jade, me introduziu na noite em que a presenteei a um show especial que criara. Nomeou aquela performance de “Solidificação de Eroto-Prana”, ela era escolada nas tradições que envolviam palavras como Prana, Dharma, Qabbalah e Abrahadabra.

    Acho que ampliou esse interesse quando se deixou dominar pela única vez e eu disse a ela que eu era um Deus de Prata, que a inoculava com a semente de uma raça superiora. Visitamos uma única vez a última morada de papai, ela gostou dos livros dele e consegui trocá-los por mais algum tempo de prazer sem culpa após a gota de uma droga chamada de “melzinho de moça”.

    Com o tempo paguei a dívida, tive então de que me mudar da torre da Asa 3-Oeste, o burgo abandonado de papai. O dinheiro foi fruto da eliminação de todas as memórias dele e de mamãe, naquele dia escrevi em um pedaço de couro de porco que eu nascera divinamente, fruto da queima da gasolina que irritara algum deus. Ri, fechei a porta, entreguei a chave e voltei para o corte de carne. Demorei algum tempo pra entender a graça daquela frase.

    Foi então que comecei a ver essas placas, me mudara para o subúrbio da Asa 3-Oeste onde fiquei mais perto de Dandara e do corte das carnes. Primeiro elas eram bem feitas, ouro ou bronze com metal líquido em movimento. Raras e fantásticas. Por algum motivo de economia resolveram usar o plástico e o silicone para as placas seguintes, eram mais bonitas nas primeiras semanas. Desgastadas, foram cultuadas como pós-modernidade erosiva.

    Dandara me deu adeus ali no matadouro, algum tempo depois de minha barba já ter se consolidado, deixou algum troco na mão do dono e me trancou com ela por dois dias. No fim das contas eu não sabia se o sangue espalhado era meu, dela ou de alguma carne mal cortada.

    Passeamos por cada curva que ela tinha, conheci enfim todo seu repertório e repetimos algumas vezes. Ela me disse que nenhum outro homem conheceria todos aqueles movimentos, deu um único beijo molhado em minha boca e saiu toda banhada em sangue sacrifical. Provavelmente algo iniciatório.

    O homem não se importou com nada, mandou outro lote de carne e eu continuei a ampliar a gama de cortes que conhecia. Uma semana depois eu decidi não precisava mais cortar carne e escolhi continuar por mais uma semana, que se transformou em mês e em seguida em ano, o momento acontecia.

    Quando o homem foi vítima de um ataque convulsivo brincando com facas elétricas o novo dono mandou todo mundo embora, eu me despedi com uma boa joelhada em seu saco, homenagem ao falecido, tomei-lhe dois dentes podres e segui meu caminho.

    Vi a primeira placa após pular do carona que ia seguir para outro lado, perseguia um cometa e me confessou que ele o deixaria milionário, tinha uma picareta para escavá-lo e ia encontrar alguma coisa que não soube me explicar. Vira tudo em um sonho, e contra o sonho, lutar seria estupidez.

    Eu disse a vocês quatorze placas, menti. Na verdade foram bem mais, no entanto estavam amassadas ou em estado de descuido total. As quatorze mencionadas eram as mais bonitas vistas pelo caminho e a última delas me lembrou de alguma forma bizarra os dentes de Dandara, retangulares e perfeitamente brancos.

    Não entendi o que estava escrito, mas conhecia a região e sabia que ali era propriedade de gente importante, daí terem cacife para manter uma placa daquelas sempre branca e brilhante. Senti saudades das curvas de Dandara.

    Atravessei o rio na terceira noite de caminhada, passei pelo leilão das placas e vi todas as seções que diferenciavam os ricos dos importantes, os pobres dos famintos. Cada seção tinha direito a apenas uma placa por dia, não era possível negociar nem reclamar. Claro que as placas mais caras eram as mais bonitas, mas naquele emaranhado de perfumes doces e podres todos tinham chance de ter a sua. Todos tinham chance de ter uma identidade.

    Dois homens na porta do bar ao lado do leilão conversavam sobre os alfabetos, fingi procurar algo no chão de terra ao lado e ouvi alguma coisa sobre uma cabeça de boi ser invertida ou torcida para entrar em conformidade com o significado.

    Não me animei, pois logo vi que não falavam de um boi propriamente dito, e que virar a cabeça dele não era um método diferente para sacrificar e fornecer carne. Dei de ombros e entrei no bar.

    A primeira pessoa que vi após passar pela porta foi um Leão de Chácara, do alto de seus mais de dois metros e meio de altura ele não fazia revista. Era apenas um snif, snif em cada um que parava na sua frente. Ninguém ia tentar entrar com uma arma ali vendo as garras geneticamente estimuladas do gigante, mas ele cumpria seu papel.

    Entrei na pequena fila de três pessoas e aguardei minha vez, observei um pouco aqueles três à minha frente e vi que estavam em melhores condições financeiras que eu, o que não era raro também. Um deles olhou para trás e fez aquele olhar de quem tomou uma facada no estômago e está prestes a vomitar, afinal eu era plebe para ele e não deveria estar no mesmo recinto.

    Encarando um pouco o Leão, para não sucumbir a meu impulso de puxar qualquer coisa pontuda da mochila e fazer com que o metido sentisse verdadeiramente a dor que fingira, notei o tamanho das garras dele, não consegui deixar de rir quando imaginei como aquele cara fazia para limpar a bunda.

    Na minha vez ele deu a primeira snifada e na segunda e eu achei que já poderia passar, fui barrado. Ele deu uma terceira snifada e lambeu os beiços perguntando se eu podia indicar algum corte especial para ele. Trabalhar com sangue todos os dias não é algo que sai com uma lavada de mãos, prometi que lhe faria uma consultoria completa logo que ele fizesse sua pausa de turno. Entrei e ganhei um cartão cinza marmorizado, bem diferente do amarelo vômito que os outros ganhavam.

    Após a corda de contenção fui recebido por duas meninas com aparentemente não mais de 13 anos, estimuladas geneticamente para aparentarem aquela idade. Elas eram a prata da casa, estar acompanhado delas servia para notificar que eu era alguém importante e tinha tratamento preferencial.

    Foi irônico ter sido tratado como alguém importante apenas por conhecer certos cortes e técnicas. O riquinho, que há pouco me medira como um filete de bosta em seu caminho, não pode acreditar na cena, ignorei e fomos logo para um quarto onde dispensei as garotas, disse que pegar crianças, naturais ou não, não fazia meu estilo. Recebi Dandara logo a seguir.

    Veja bem, não era exatamente a minha Dandara, não tinha dentes perfeitos e precisos como os dela, não era negra, mas de um tom mulato desbotado tentando se fixar no jambo. No entanto o olhar profissional era o mesmo. A paixão com os quadris era a mesma. Chamei-a pelo resto da noite de Dan.

    Seu nome pelo que lembro era Mônica, mas não ligou de ser chamada por outro nome enquanto desempenhava sua função. Ela me confessou, de quatro, estava acostumada ser chamada de nomes piores. Percebi que era um convite.

    Fui à forra com a mulata, no começo do movimento ela tentou me surpreender com alguns rebolados que conhecia, sem sucesso. Em seguida guiei-a com alguns dos rebolados que foram elevados à perfeição com Dandara. Me senti o verdadeiro Deus de Prata quando ela orgasmou consecutivamente e quase caiu, de pernas bambas e sem conseguir se levantar por longos minutos.

    Após deixá-la de lado, para mergulhar em um drinque do qual pulavam faíscas, rapidamente a parede de trás do quarto se abriu, revelando ser um camarote para o resto do bar, com vista exclusiva para a pista de dança e visão privilegiada para o festim sado-burlesco que acontecia nesse segundo andar, logo à frente.

    O segurança bateu na porta antes de entrar, Dan o recebeu e em seguida saiu deixando-nos a sós. A consultoria foi rápida, ele me pediu indicação e eu pedi uma cabra. Feito.

    Ele me pediu um corte e eu dei a ele três. Feito.

    Aquele cara comia muita carne, uma necessidade de quem tem um sistema genético como o dele para alimentar, deviam ser células de deuses ou algo dessa complexidade. Apaixonou-se pelo corte traseiro enviesado, feito com uma explosão de sangue após amarrar bem apertada a artéria da perna.

    Após vê-lo saborear a carne ainda sangrando ,com a habilidade de um verdadeiro conhecedor, expliquei a seu funcionário sobre as veias e os nervos a se evitar, e desenhei rapidamente um mapa para guiá-lo.

    Disse que o funcionário não cuidava de cortes, ele tinha a doença da tremedeira e não conseguia cortar um centímetro sem fazer zig zag. O segurança parou por alguns minutos pensando e me fez uma proposta, daquelas que você recusa apenas se quiser ser morto ou for idiota a ponto de não entendê-la.

    Quase perdi o ar com o abraço de satisfação e agradecimento do Leão, ele disse que a noite era por conta dele e deixou o quarto. Escolhi as mulheres não mais pensando em Dandara. Dan conseguiu sufocar a saudade por tempo suficiente para que o Deus de Prata experimentasse o mais fino da casa.

    Mei foi a primeira. Uma oriental de coxas enormes e muita habilidade em prolongar o prazer de um homem, sorria quase convulsivamente a cada orgasmo e logo me cansou pela falta de habilidade em rebolados

    Angélica foi a segunda. Magra, olhos azuis e uma cabeleira longa, cheia de ondas e volumosa, ela chegou toda cheirosa lançando seu aroma pêssego pelo ar e me prometendo mais do que conseguiu cumprir. Após se assustar com meu conhecimento de sua anatomia e com a descoberta que fiz, de que ela adorava ser asfixiada, tentou fazer o tipo namoradinha. Tchau!

    Tive uma terceira e na quarta recebi uma quinta junto, o comentário já tinha sido feito e cada uma delas queria ver se eu descobria os segredos delas. Me deliciei em ver que todas ficaram atônitas com a constatação que eu descobria, agradecia a Dandara pelos segredos de cada rebolado.

    No fim das contas foram inúmeros prazeres, e um sem número de reboladas que eu já conhecia de traz para frente, a única informação válida foi o porquê daquelas placas serem tão importantes. Cada placa era como um espírito, um guardião, algo bem gênio da garrafa que protegia a casa em que fosse colocada da sorte de monstruosidades que os Gregoraquinianos, os reis do mundo, soltavam às vezes para passar o tempo.

    Quem descobrira isso e como produzir essas placas ninguém contaria, do contrário os reis poderiam caçá-lo. Ou caçá-los, devia ter mais de uma pessoa que soubesse isso, mesmo que os leilões fossem particularidade da cidade, a forma encontrada para proteger a vida dos moradores.

    Acordei na manhã seguinte revigorado e troquei número de telefone com as garotas, que talvez jogassem meu número fora e com o Leão, que eu ainda não sabia, mas viria a se tornar meu maior cliente, além de patrocinador.

    Na rua, debaixo daquele cinza que eram os dias, sempre sem sol, foi que decidi dar uma andada pela cidade, ainda sentindo o cheiro de oportunidade no ar. Enfim escolhi uma vizinhança bacana, bati na porta da casa que gostei e que não tinha uma placa ainda. Soube de quem ela era e quanto teria de pagar, anotei tudo mentalmente e voltei ao caminho inicial.

    Demorei mais quatro dias pra chegar à cidade de Dandara, durante esses dias revisei meus planos e recebi um telefonema do Leão, que acertou todos detalhes comigo e me deu o sinal positivo para prosseguir com o plano.

    A cidade de Dandara era marcada por longos edifícios escarlate, ruas negras e uma limpeza asséptica nas ruas que me causava nojo. Não zanzei muito por ali e fui direto para a zona das gueixas pós-pagas, eu sabia que era para lá que ela se dirigira depois de formada.

    Fui tomado como mendigo logo nos portões, o segurança deles logo veio ao meu encontro e me reconheceu, disse que tudo estava arranjado. O Leão, seu irmão de armas, como alegou, tinha feito boas recomendações. Passei dois cortes de boi para ele e ganhei em uma caixa de madeira muito bonita um cutelo de prata, feito dos restos de alguma placa cuja história para eles era um tabu. Tinha algumas inscrições que eu também não entendia e davam a ele um ar ritualístico, Dandara se apaixonaria.

    Coloquei aquele afiado instrumento de arte na cintura e fui até a casa principal da zona, onde estavam as gueixas que se esforçavam tal qual Dandara, o irmão do Leão me indicou o caminho e disse não me acompanhar por saber que eu conseguiria tudo sozinho.

    Tentaram me colocar pra fora da casa, o dono apareceu após eu dizer que era marido de Dandara e tentou me intimidar dizendo que ela agora pertencia a ele de papel passado. Contra essas leis eu não teria o que fazer e teria de engolir a seco.

    Teria, não fosse a falha dele em esconder a marca de falsificação do documento, se papai me ensinara sem perceber alguma coisa que eu jamais julgara vir a ser útil em minha vida, fora a reconhecer uma falsificação grosseira. Devo ter sorrido como um psicopata, a lei estava a meu favor.

    Cortei a mão do camarada com um só golpe, não foi um golpe bonito nem plástico, atingiu da maneira errada a artéria e ele se tornou um esguicho disperso de sangue. O segundo golpe na parte traseira da coxa, enquanto ele tentava correr, foi como um golpe contra um novilho. Arranquei um bife de ponta a ponta.

    Bem, os golpes seguintes foram feitos com requinte de crueldade artística herdada do casamento grotesco de meus pais. Enquanto eu tentava deixar o resto da sala pintada da mesma cor, apenas firmava a individualidade de minha alma.

    Um exército de seguranças apareceu pra me escalpelar vivo, eram os tipos de caras contra quem o cutelo não faria um arranhão, acho que foi a única hora onde eu quase me borrei. Tive um ímpeto de coragem e levantei o cutelo preparado para morrer.

    Graças ao irmão do Leão, eu apenas sentei em uma mesa e após mais de vinte consultorias de cortes eles me indicaram que ela estava no quarto andar da casa, era mantida como escrava de chicotadas, perguntaram se eu queria ajuda e eu respondi que não, um verdadeiro homem resolvia sozinho esse tipo de assunto.

    Antes de subir me contaram que o dono broxa da casa nunca tinha conseguido uma ereção pra saborear aqueles glúteos. Decidiu por fim que, se ele não podia, ninguém mais poderia. Com isso, alugava o couro de Dandara como alvo para os pervertidos que sentiam falta das surras que tomavam quando criança e só podiam devolvê-las a alguém pagando uma boa quantia. Patéticos.

    Esses broxas eram mais numerosos que eu imaginava, imaginei que eram todos amigos do dono ao vê-los fazendo uma fila que dobrava o corredor, chegando perto da escada. Um a um bradavam seus chicotes com um orgasmo entalado na garganta pronto para desferir os açoites na bunda redonda de Dandara.

    Só consegui fazer um bom serviço no último da fila. Os últimos realmente são os primeiros, lembrei, pois aquele foi o único que atingi com surpresa, todos os outros tentaram correr, alguns invadiram quartos sendo surrados por todo tipo de pervertido que ainda tinha verve.

    Outros pularam pela janela em pura estupidez. Por fim restava a porta com uma enorme placa acima, nela, mais uma das muitas inscrições que eu não conseguia ler. Usei a maçaneta como todo homem civilizado usaria para entrar em um recinto e tive como primeira visão o magrinho branquelo.

    Era um tipinho tosco, pancinha saliente em um corpo magrelo, usava um açoite cromado e já tinha desferido uma meia dúzia de golpes naqueles montes gêmeos. Dandara estava de quatro, amarrada, tinha um cinto de castidade que a protegia de violações, mas permitia as chibatas perfeitamente.

    Ele se preparava para mais um golpe quando deve ter visto minha sombra e se virou, deu de cara comigo e recebeu o cutelo entre os olhos. Não calculei direito a força do golpe e ele sobreviveu.  Ainda estava vivo, com um açoite no meio da testa chorando e sangrando em desespero igual uma criancinha.

    Os gemidinhos de dor dele me irritaram, uma bica no estômago fez ele se calar e ficar imóvel o suficiente para arrancar o cutelo de volta, desmaiou com a visão do sangue que vertia de sua cabeça. Cortei as amarras de Dandara e ela me olhou com aquelas duas pérolas negras que tinha como olhos com paixão pela primeira vez na vida.

    Vi logo atrás uma câmera que filmava tudo ali, provavelmente era a única forma com a qual o dono broxa conseguia ter alguma ereção, uma voz saiu dela e percebi que era um dos seguranças, avisando que tudo seria apagado e eu não precisaria me preocupar, o próximo dono estava esperando para tomar posse daquele prédio. Clientes satisfeitos.

    Dandara estava magra, pálida e abatida, mal comia e fazia muito tempo que não via a luz do sol. Eu a abracei, ri e disse que um pouco de carne resolvia aquilo rapidamente. Ela me deu um beijo na boca e disse que não me amava, mas que ficaria comigo pra conseguir aprender isso alguma hora.

    Assim que chegamos à cidade velha o Leão já tinha resolvido tudo conforme combinado. Ele mesmo comprara nossa nova casa como um empréstimo que eu pagaria oportunamente. Assim que entramos, eu a coloquei na cama e resolvi que ia preparar um belo bife para ela.

    Pouco antes que eu chegasse à porta ouvi meu nome sendo sussurrado, cheguei bem perto e ouvi que ela tinha fome, mas de outra coisa e que deixaria a carne pra depois… Ou durante, se eu preferisse.

    Nos atracamos como duas criaturas no cio, o que era de costume, e a cada rebolada que executávamos em homenagem aos dias do passado, e aos presentes do futuro, eu me perguntava se amor era aquilo, ter a certeza de que apenas os rebolados dela poderiam saciar minha vontades em cada um de seus momentos.

    Na semana seguinte aprendi a ler um pouco de algumas das placas, foi exigência de Dandara, pois logo teríamos a nossa. Na segunda semana eu já conseguia ler a maior parte do que estava escrito em algumas, mas ainda não inteiramente.

    Enquanto Dandara recuperava sua plenitude, me usando como cobaia para novos rebolados que somente usaria comigo, segundo sua palavra, pude aos poucos perceber que minha influência havia se tornado massiva, os clientes mal davam descanso, vinham de todos os lugares, e em sua maioria, indicados pelo Leão, esse era o mal das células de deuses e demônios que eram implantadas nesses caras, uma fome que apenas a carne e o preciso corte podiam saciar.

    Por fim chegou o tão esperado dia no qual eu faria parte do leilão, na ala mais importante onde as placas mais desejadas eram dueladas quase como um pedaço de carne em uma briga de cães famintos portando foices. Tudo estava arranjado para que fosse eu o vencedor, cortesia de meu mais fiel cliente.

    Entre os gritos e disputas dos pobres e famintos, e a empertigues do leilão rico, minha ansiedade foi acalentada pelo sentimento bizarro que foi ler, pela primeira vez em minha vida, uma placa do começo ao fim. Ela era bela, era minha, feita de ouro e bronze polido com detalhes em couro-bravo.

    Fixada na porta de casa, nela eu pude entender a felicidade e a importância de quem as tinha de longa data, lá eu pude pela primeira vez entender essa felicidade ao ler a cada dia que iniciava um dia de trabalho que nela estava escrito: Açougue Cutelo de Prata!

  • Banquete de Maná e a oração à unificação

    Banquete de Maná e a oração à unificação

    (gula)

    Acredite, a dor de ter milhares de criaturas entrando em seu corpo pelos poros não é algo que você vai querer guardar como lembrança. Não que consiga, se quiser.

    Talvez até imagine em algum momento que foi uma alucinação de sua mente e que tudo na verdade não passou de um pensamento estranho, ou no máximo um pesadelo.

    Mas não funciona comigo, sou relembrado a cada dia de como isso aconteceu e essa lembrança me faz rir sozinho por alguns minutos. Aliás, nunca sozinho, pois desde então eu estou sempre acompanhado.

    Eles me acompanham para todo o lugar, ou talvez eu devesse dizer que eu os acompanho, já que eles são em maior número. No entanto todos atendem pelo mesmo nome, Belial, e talvez por isso eu deveria dizer que realmente não importa quem acompanha quem.

    Isso aconteceu bem antes que eu conhecesse Sevla ou Melangra, minhas esposas belas e jovens que quase morreram trapaceando numa mesa de cartas, mas isso seria uma outra história, e certamente muito mais picante.

    Conheci Belial antes que o mundo acabasse, você sabe, antes que a Mortalha se espalhasse em volta dessa esfera de insanidade e convalescência cósmica, a grande piada da existência, como eu sempre gostei de pontuar.

    Ele não é como os “Sete Sacais”, os babacas que chegaram aqui trazidos por garotos mais babacas ainda em uma noite bizarra de magia de butique feita em um cinema abandonado. A merda maior foi o cinema ter sido construído em cima de um cemitério indígena ancestral.

    Enfim, Belial não é anjo nem demônio, não está vivo nem morto. Já pensei até que podia ser alucinação decorrente de um tumor cerebral ou algo semelhante, mas não, quando fui alvo de uma disputa de tiros entre dois policiais corruptos percebi que a união do qual ele falara era real.

    No princípio dos tempos ele foi um só, naquela época o rebuliço no paraíso foi tão grande que os anjos se dividiram, demônios nasceram, alguns caíram e sobrou merda pra todo lado, cada um abraçou a bandeira que mais agradava e começou o caos celestial.

    Belial então conversou com um amigo, trocou uma idéia com um irmão, expôs conhecimentos a um primo… Quando menos percebeu, ele não era mais um, não que os outros faziam parte dele, mas como dizer? Eles deixaram de existir para que Belial se expandisse.

    Não é fácil, eu sei, convivo com isso e ainda não entendo completamente, que dirá de qualquer mortal que saiba a respeito. Claro, ele conseguiu passar pra cá junto com os sete Sacais, afinal, o buraco que os garotos abriram foi tão grande que muita coisa passou junto, até mesmo algumas que ainda dormem sobre o qual Belial sempre sussurra.

    Construir a Agulha Negra foi a primeira coisa que fizemos digna de nota. Eu tinha o conhecimento e Belial o poder, o material veio de uma cidade afligida por um vulcão que deixou  vidro negro para todo lado e muito concreto soterrado esperando para ser retirado.

    Logo construímos a segunda e antes que a terceira tivesse sido sequer planejada, a cidade se formou ao redor delas. Coube ao mais velho morador, eu, a função de líder, prefeito e por que não dizer, rei.

    Mas isso tudo já fazem mais de 50 anos, desde então as coisas não mudaram muito aqui em Gólgota e Belial tem andado quieto, me deixado por tempo demais na autonomia do corpo e do poder.

    Tanto tempo assim transforma o homem, eu não sei dizer se a moral deixou de existir, foi suplantada ou mesmo plenamente compreendida, mas definitivamente eu consigo entender Belial e seus propósitos não mais tentando classificá-lo como bom ou mal.

    Sob certos pontos de vista a visão da realidade se torna bem menos objetiva para tentar assumir um aspecto mais aceitável para a consciência, no entanto o que controla e tem o poder, muitas vezes tem de ir além desses pontos de vista. Ultrapassar alguns limites se torna algo comum.

    Eu não sei se ainda vivo por estar aguardando o que o futuro reservar de surpresa ou se é pelo idealismo que eu tinha nos primeiros 15 anos quando queria dar um jeito de resolver a merda que aconteceu no mundo, devolver a terra a seus habitantes. Digo mais, tirar os malditos Sacais do poder e conseguir enfim descansar em paz.

    Mas quem descansa em paz descansa para sempre. Paz é para os mortos e enquanto eu estiver vivo sei que a guerra estará em meu encalço. Mesmo que seja uma guerra espiritual do qual eu apenas sinta o aroma de enxofre quando perco a consciência.

    Hoje, 50 anos e 3 agulhas depois, Belial me disse que elas são na verdade pregos, e que construir as primeiras foi fácil demais, o grande desafio que ele ocultara de mim por tempo suficiente, foi construir a quarta, subterrânea e oculta.

    Não era piada e eu pude vê-la com meus próprios olhos. Diferente dos anos que passamos Belial enfim assumiu uma voz e uma personalidade como dominante, disse que a hora de agir tinha chego e que, graças à gula de um dos Sacais, poderíamos dar o primeiro golpe fatal:

    – Você quer fazer a diferença, não é mesmo?

    – Claro que sim, por isso aceitei o acordo.

    – Você aceitou para não morrer, agora é sua chance de se livrar de vez disso.

    – Não tenho do que me livrar. De tanto que você já conhece meus pensamentos, já te considero como parte de quem eu sou.

    – Certamente, não poderia ser diferente. Até mesmo nós nos apegamos a você, o que era inicialmente apenas um veículo se tornou algo do qual nos orgulhamos. Temos muito futuro juntos.

    – Futuro? Não me importa muito, com o que eu já vivi e experimentei, se minha vida acabasse agora não seria motivo de tristeza. Acho que se essa situação representa algum risco real, ela sim é algo pelo qual vale a pena suar.

    – Você se tornou muito espirituoso, teve uma oportunidade em vida que muitos teriam transformado em maldição, pecado e perdição e conseguiu fazer algo que nem mesmo nós imaginamos ser possível em nosso primeiro contato.

    – Muito me felicita saber isso. Vamos adiante?

    – Sim, o caminho não é longo, mas devemos passar em uma pequena cidade antes.

    O amor à vida eu perdi faz tempo, a aventura e a adrenalina se tornaram o raro diferencial pelo qual eu estendia minha vida, momentos em que eu podia me tornar ciente de minha quase imortalidade. Um um plano insano para derrubar um deles não me parecia nem um pouco seguro, por isso aceitei na mesma hora.

    Sevla e Melangra ficaram encarregadas de controlar a cidade, pegamos o V8 dado pelos xamãs e seguimos rumo a um esconderijo secreto no Quarto Prego, aquele que nunca esfriaria e representava, ao mesmo tempo, um dos maiores milagres na terra e uma das mais terríveis profanidades já cometidas. Não tínhamos tempo para diálogos morais.

    Durante os anos em que o último prego fora fincado na terra, no coração das cidades da resistência, Belial moldou caminhos e ações, fez alianças com deuses antigos e esquecidos e até mesmo com lideranças que o caçaram no passado.

    E ali na sala que jamais vira a luz, Belial me fez relembrar a dor de nossa união: Duas vezes.

    Primeiro ele saiu através de cada poro de meu corpo, minha carne parecia que ia estourar enquanto meus ossos clamavam por serem estraçalhados logo. Verti sangue por todos os lugares possíveis e imagináveis e senti que a morte seria um presente muito bem vindo.

    O enxame de criaturas estava fora de meu corpo pela primeira vez em tanto tempo, a aparência era muito mais ameaçadora do que eu lembrava conforme eles se moviam em direção a uma coisa que surgira enquanto eu ainda tinha espasmos de dor, uma montanha de algo dourado e extremamente aromático.

    Fiquei de joelhos tendo pequenas convulsões enquanto cada uma daquelas criaturas se alimentava daquela montanha, comiam vorazes como se tivessem esperado um milênio para isso. Foi quando então percebi que pela primeira vez Belial abrira totalmente a comporta de ida e vinda de seu conhecimento.

    Pensar em um assunto trazia séculos de conhecimento a respeito dele, a genealogia de cada tratado e conceito que existisse sob a face da terra estava ao meu dispor, e me senti exatamente como sabia que aquelas criaturas estavam se sentindo: Se alimentando de verdade pela primeira vez na existência.

    Jamais fora de minha cobiça o conhecimento, pelo contrário, sempre gostei de conhecer apenas o necessário do que me fosse útil, no entanto ter contato com Belial durante tanto tempo, deve ter mudado alguns dos cordões de minha existência.

    Logo a montanha dourada fora reduzida a pequenos farelos sem brilho e sem aquela vivacidade que apresentavam antes, eu entendi o que tinham feito e o motivo pelo qual tinham feito. Senti um pouco de desconforto quando percebi que exatamente como aquelas criaturas, eu estava passando mal de tanto me alimentar, a gula era realmente um pecado.

    Jogado no chão eu devo ter cochilado por algumas horas, acordei com uma ressaca terrível percebendo que o fluxo de informação não conseguia ser interrompido, mesmo fora de meu corpo o elo entre Belial e eu era contínuo, apenas os pensamentos da legião que eu não conseguia mais ouvir.

    Enfim vi suásticas, crucifixos, trisquetas, ankhs, e todo tipo de símbolo religioso espalhado em volta daquela sala que somente se iluminara quando a montanha de Maná se revelara. O que Belial prometera a todos os que compartilharam com aquele banquete não tinha sido algo altruísta, ia ao encontro dos objetivos de todos, mas certamente beneficiava muito mais a nossa sociedade.

    As criaturas voltaram a se mover, vieram em minha direção e pensei no que aconteceria se eu tentasse fugir. Criancices fazem parte do escopo de ações de uma criança, não sendo eu uma criança, dei um passo adiante para que voltássemos à comunhão.

    Da primeira vez que nos unimos doeu bastante, lembro que morrer foi um pensamento constante enquanto aquilo acontecia. Na segunda vez, há poucas horas, doeu mais ainda, e morrer se tornou uma possibilidade agradável para aplacar a dor: Nessa terceira vez eu não senti nada.

    Considere por um momento que algo que se torna sua essência por um momento, em total plenitude, seja a dor. Logo, essa dor é você, e não algo que você sente, certo?

    Só assim eu conseguiria descrever a reentrada daquelas criaturas em meu corpo, alimentadas e com pelo menos 5 vezes o tamanho de antes. A entrada forçada praticamente separou cada célula de meu corpo para que acontecesse.

    Acho que assim fica justificado o blackout de 3 dias que tive a seguir. Sem ressentimentos nem motivos para tiração de sarro posterior por fraqueza.

    Seguimos para uma pequena cidadezinha não muito longe, como a maioria, destruída pelos anos e pelas maldições. Mesmo velha e precária em sua aparência geral, era um reduto de alguma alta tecnologia que conseguiram manter. Belial me disse então que o dono da casa de cortes tinha uma fama bem interessante, ninguém sabia seu nome e apenas o chamavam de Cutelo.

    Belial arrumara tudo com antecedência, fez uma aliança com a esposa dele em um momento de total privação sensorial, enquanto ela ainda era uma escrava presa em uma casa de prostituição, para lá nos dirigimos passando por boates e até mesmo uma espécie de leilão de placas.

    Fomos bem recebidos pela mulher e o homem não demonstrou ciúme algum, Belial me deixou claro que ele tinha mais firmeza e propósito que podiam ser julgados pela aparência. Era o homem certo para o trabalho certo.

    Conversamos com Cutelo e ele sabia que era um trabalho difícil e bem demorado, sua esposa lhe deixou ciente que nosso sucesso nessa empreitada se dava à sua habilidade particular e quase épica de fazer os cortes perfeitos.

    Apenas com a perfeição que ele alcançara no decorrer de seu ofício, que deixaria com inveja todos os sacerdotes que ficaram por vidas esmerando a habilidade no corte da carne, conseguiríamos prover uma oferenda boa para deixar o Sacal tonto o suficiente, abrindo a janela que Belial precisava.

    A esposa de Cutelo demorou, mas conseguiu explicar a ele que esse seria o trabalho de sua vida, aquele pelo qual seria conhecido através do tempo. Sem muitas ambições, ele apenas queria ver se conseguia, afinal, era essa a função dele no mundo.

    Normalmente uma galinha ou um galo são o suficiente para uma oferenda, cabras e bodes são cortes maiores e resolvem problemas bem complicados, um boi ou uma vaca são motivo para cuidado extremo e certeza de que sabe-se o que está fazendo. O homem afiou alegremente seu cutelo de Prata ao ver e pequena manada de búfalos, quase em reverência para a matança.

    Demoramos dois dias para completar todos aqueles sacrifícios, enquanto Cutelo fazia os cortes com precisão, velocidade e perfeição, Belial cantava e proferia as preces corretas para cada caso. Não seria errado dizer que matamos uma fazenda. Desperdício? Zero!

    Toda a carne distribuída alimentou crianças órfãs, pessoas pobres que mal tinham dinheiro para comprar um pão, e todo tipo de gente que morava naquela cidadezinha. Enfim foi uma grande festa, no qual oportunas orações foram feitas exaustivamente por pessoas que gostariam de mudar as condições de sua vida.

    No fim das contas nos despedimos do homem e de sua esposa com todas as oferendas organizadas, limpas e prontas para receberem seu uso final: Cabeças, rins, fígado, pulmão, cada parte sagrada foi separada e levada para a missão.

    O caminho foi curto até a toca do Sacal, lá posicionamos cada uma das oferendas na entrada e então nos afastamos. A falta de guardas ou protetores não devia ser tomada como um sinal de que seria fácil, mas sim de que o lugar era secreto e a criatura que ali habitava era capaz de se defender sozinha.

    Permanecemos por um dia, parados e atentos em um esconderijo perfeito, logo, as oferendas começaram a atrair moscas devido ao avançado estágio de decomposição. Em poucas horas elas não mais pareciam insetos, mas sim uma nuvem de tão numerosas que eram.

    As nuvens do céu escuro se agitaram relampejando e trovejando em uma ameaça velada de chuva, era o sinal da Alma do Mundo de que o temor das potências que rodeavam aquele lugar era maior do que Belial estimara.

    Mesmo sem a chuva, o aroma do ar mudou e ventos fortes começaram a soprar tão forte que o aroma pútrido das oferendas não mais se fazia presente, no entanto, as moscas permaneciam ali paradas, como se pesassem cada uma mais de 20 quilos.

    Belial então abriu a última comporta que separava nossas mentes, aquela que deixava seus pensamentos secretos isolados dos meus. Um gesto da confiança absoluta de que eu não o deixaria ali para batalhar sozinho. Ele estava correto.

    A Nuvem não era nada menos que o próprio Belzebu em pessoa, ele já percebera Belial ali, seu irmão, e embora aquilo tivesse me causado surpresa, eu compreendi bem como cada um deles eram aspectos da mesma coisa, ou fenômeno se assim eu poderia descrever.

    Uma explosão na primeira oferenda e a nuvem de moscas tornou-se mais densa, a segunda demorou a acontecer e foi o sinal que esperávamos para correr. Todos os outros sacrifícios explodiram sinalizando que tinham sido consumidos, e a única forma disso ser feito, era que a própria entidade estivesse ali em sua plenitude.

    Meus passos eram dados em uma velocidade que eu jamais testemunhara, cada célula de meu corpo estava entrando em colapso prestes a explodir devido ao atrito com o e o primeiro impacto entre nós e Belzebu fez com que eu me lembrasse da dor da comunhão.

    As asas da criatura traziam a luminescência pálida da morte, alguns chamavam ele e os seus de Gregoraquinianos, mas eu dificilmente deixaria de chamá-los de Sacais. Sua primeira tentativa foi a de desferir um golpe com as presas em minha garganta, percebemos a tempo e conseguimos nos esquivar do golpe com um pulo para trás.

    Enfim Belzebu estava completamente manifesto, o aroma pútrido do ar sumiu dando lugar a incenso queimado em piras enormes na antiguidade, quando a ele ainda era rendido o respeito a um deus. Pude ver os muitos sacrifícios que foram feitos pela história a ele sem que seu nome fosse dito por temor.

    Ele subiu em seu vôo para longe, se distanciando o suficiente para ter uma visão melhor da área do combate, sabia que se tentasse fugir e por um único segundo abrisse guarda para seu irmão, não sobreviveria para a próxima refeição.

    Foi minha a vez de correr e alcançar o ar com um pulo, nós estávamos aos poucos deixando de ser eu e Belial, e enquanto eu avançava pelo ar, nós nos esquecemos do nome que tínhamos outrora.

    Belzebu desceu em um rasante tentando acertar minha perna, eu a recolhi apenas para receber um jato de ácido vomitado astuciosamente em meu rosto. Sofri as duras penas da privação da visão e aos poucos perdi as forças que julguei ter.

    Em uma manobra rápida ele deve ter girado no ar e voltou me atacando com sua presa mais uma vez, dessa vez foi certeiro e senti que em minha perna esquerda estava cravado o ferrão que queimava continuamente, tentei colocar as mãos, mas fui sacudido para o lado, a batalha estava perdida.

    A derrota do homem que fazia parte de nós há 50 anos não seria boa para nós, não nos deixava felizes nem mesmo satisfeitos, ao contrário de nosso irmão nós apreciávamos a vida dos homens e com isso fizemos nosso nome tornar-se sinônimo da indestrutibilidade.

    Mas o irmão era mais velho, mais sábio e guardava muito mais rancor dentro de si pelo tempo que permanecera preso, naquela confusão causada pela repressão ao seu culto e pela perseguição aos seus fiéis. Seu poder imenso só rivalizava com seu propósito e raiva. Destruí-lo seria impossível.

    Senti então pela primeira vez o que acontecia de fato enquanto eu estava inconsciente e nós tomávamos a dianteira, diluindo minha existência na legião eu não me tornava mais fraco, mas nós tornávamo-nos mais fortes.

    Sentimos então a comunhão completa, e o corpo do homem que estava sendo atacado e machucado, que era o corpo que também era nosso, passou a responder ao que queríamos. Belzebu tentava devorar nosso crânio quando sentiu que nós estávamos alimentados do Maná.

    Ele proferiu maldições ancestrais, atirou-nos poderes que escondia no âmago de seu ser e quando o homem enfim deixou de ser um, para ser “nós”, pudemos proferir nossa verdadeira voz pela primeira vez na existência.

    Com um golpe rápido a presa da mosca abissal fora quebrada, sangue amarelo com aroma de pus começou a escorrer e cada gota que tocava o solo era mais um pouco da eterna fome que jamais se saciava por querer ser tudo, essa fome nós entendíamos bem.

    O irmão se afastou e deu um novo golpe, dessa vez jogando a força e o peso de seu corpo em cima de nós. Fomos lançados ao chão onde quase fomos esmagados pelo peso dele, e na ânsia de nos espetar com a outra presa que restava, conseguimos sair debaixo daquele monte.

    Ele rolou, impulsionou-se para o alto com as patas ainda fortes e vimos que, enquanto aquelas asas fossem rápidas o bastante, dependeríamos da sorte. Pulamos mais uma vez, dessa vez mais rápido que ele e então conseguimos montar seu corpo.

    Eu disse ao irmão que aquela forma era forte e majestosa, e que se estivéssemos em nosso lar, quente e esmagador, certamente eu estaria perdido. Belzebu entrou em pânico pelo que previu que aconteceria e tentou jogar-nos para longe de seu lombo tarde demais.

    Abrimos nossa boca e arrancamos uma de suas asas, no pânico causado pela fraqueza o irmão estava limitado às leis naturais daquele mundo. Caímos tão velozmente que todos os ossos de meu corpo se quebraram, se fosse ainda o homem, nada teria restado.

    Somente quando tentou voar novamente, não conseguiu e estava prestes a ser destruído, foi que Belzebu se enfureceu. De seu corpo saiu um jato daquele líquido amarelo, e como um foguete ele subiu para o céu, explodindo como fogos de artifícios fariam para comemorar algo, mas ele estava apenas alertando aos outros Seis Sacais que a coesão de seus poderes corria risco.

    Não me restava muito tempo, logo eles estariam ali mesmo não gostando do irmão, Não desejariam perder a configuração atual que lhes permitia uma quase invencibilidade e se Belzebu fosse destruído, o grande plano estaria comprometido.

    O homem agradeceu estar entre nós e não ter de sentir aquela sensação novamente quando pulamos como criaturas para fora do corpo e atacamos a carne do irmão.

    Festejávamos como aquela cidade festejara com tanta carne à disposição. Fazíamos isso pois a cada mordida de cada um de nós, o irmão rompia-se em lágrimas e urros de pânico fazendo com que até mesmo a Alma do Mundo desviasse sua atenção daquele lugar.

    As nuvens se assustaram e uma tempestade de raios se fez no ar, a terra temeu e tornou-se areia tentando esconder sua vitalidade do devorador que nós mostrávamos ser. Por aquele momento a promessa de poder era tão grande que podíamos começara a devorar o mundo para nos tornarmos tudo e todos.

    Uma imensidão de possibilidades nos entorpecia e os gritos do irmão se calaram, cada um de nós pôde então saborear aquela refeição que fazia o homem em seu corpo vomitar compulsivamente. Ele jamais presenciara como nós nos alimentávamos, e como todas outras criaturas que presenciavam isso, ele começou a expelir a própria existência.

    Lá no fundo do abismo de quem somos o irmão pedia para se tornar parte de nós, ao saber as condições para que isso acontecesse ele tentou desistir, apenas quando mostramos a ele que era inevitável, ele se calou por não mais ser ele.

    Observamos o homem ao lado afastando-se da existência, chegando cada vez mais próximo da morte e decidimos que ele era “nós”, que viveríamos juntos ou morreríamos juntos, e mesmo sem querer que aquilo acontecesse, mais uma vez fizemos ele sofrer pela comunhão para que fossemos um.

    Todos os ossos de meu corpo doíam pela reconstrução forçada, as milhares de vozes e presenças de Belial me saudavam de volta e eu dizia a elas que Sevla e Melangra nos esperavam. Deitei no chão enquanto conversávamos sobre o que acontecera ali, mas o alerta veio logo, os outros seis Sacais estavam ali.

    Nós nos levantamos e vimos ao nosso redor cada um deles, furiosos e irritadiços com tudo que acontecera, queriam nos atacar e nos destruir, mas não tinham consigo o segredo de Belzebu. Sabiam que não podiam nos destruir sem destruir a unidade do poder.

    Apenas nós sabíamos como destruir e assimilar, fazendo com que se tornassem parte de nós e a coesão do poder jamais fosse interrompida. Sorrimos maliciosamente para todos eles antes que desaparecessem, em nosso sorriso ficou expressa a promessa de que em breve a unidade existiria, todos eles seriam nós e nós seríamos a unificação!

  • O obsessor no caminho ígneo do Bodisatva

    O obsessor no caminho ígneo do Bodisatva

    (inveja)

    – Estou avisando, temos pouco tempo para sair daqui – Mehal tentou dissuadir a captora com um tom seco e severo.

    – Não acredito em você, sou eu com a arma apontada então eu dou as ordens e avisos. – Declarou a voz feminina que o segurava por quase 5 minutos ali parado e de braços para o ar.

    – Vê, no horizonte longínquo, onde o fogo cai do céu? Lá, onde estaria a Asa-9 Sul? A essa hora os moradores já devem ter virado estátuas. De dentro para fora, respirando poeira das cargas piroclásticas lançadas pelas nuvens, o que aspiraram virou cimento dentro de seus pulmões. – Mehal usou um tom monótono para descrever a cena.

    – Em menos de 2 horas seremos nós e a perspectiva de ser pela eternidade uma estátua de braços na cabeça não me agrada nem um pouco. Decida-se logo! – Pressionou a mulher com vigor tentando forçar uma inversão dos papéis.

    – Me dê um motivo para acreditar em você, apenas um. – A voz feminina não hesitava por um segundo, mantinha-se firme ditando as regras do jogo e fez um clique, denunciando que agora a arma estava engatilhada.

    Mehal levantou ainda mais os braços lentamente, demonstrando que não faria movimentos bruscos, esticou o direito arregaçando a manga do outro.

     – Um Bodisatva… – A voz feminina vacilou pela primeira vez ao ver os glifos talhados e pintados pelo braço – Mas continue parado, isso… Isso não muda nada.

    Ele permaneceu imóvel por mais algum tempo enquanto ouvia a voz feminina cochichando aparentemente sozinha. Com o silêncio, sentiu pela primeira vez a presença de uma segunda pessoa, ela estava se movimentando enquanto ele permanecia parado.

    A presença se aproximou fora de seu campo de visão, tocou seu braço examinando as depressões da marca dos Bodisatvas com dedos finos, pequenos e delicados, provavelmente de uma criança.

    Por mais alguns segundos a mão passeou pelo desenho como se precisasse de completa certeza de que eram verdadeiros, em seguida, se afastou em passos apressados. A desconfiança de que fosse uma criança acabou, restava apenas certeza.

     O silêncio foi quebrado com o barulho de algo grande e pesado caindo no chão, Mehal ouviu e desconfiou que não era um bom sinal, enquanto começava a pensar nas possibilidades ouviu:

     – Perdoe-me senhor, eu jamais poderia imaginar… um Bodisatva em minha mira, jamais pensei que veria um ao vivo, perdoe-me. – O tom da voz feminina mudara completamente.

    Mehal arriscou abaixar os braços e se virou. Viu pela primeira vez sua ex-captora, ajoelhada e com a cabeça encostando-se ao chão em reverência, com o rifle largado de qualquer jeito ao seu lado. Ela era branca como leite e não muito bonita, faltava carne em seu corpo e seu rosto tinha as marcas severas do tempo. Do outro lado, estava um menino levemente mais corado, com o mesmo cabelo negro espetado e que devia ser irmão dela.

    Colocou sua mochila de volta nas costas e se aproximou de ambos, devolvendo a arma a ela e levantando-os:

    – O que eu disse agora a pouco é verdade, não foi um artifício para enganá-los. Fujam o quanto antes, para o mais longe que puderem, peguem apenas o que for estritamente necessário e corram para fora do eixo da Asa Sul, ou, se quiserem permanecer nela, ultrapassem a Asa-12 Sul.

    – Não olhem para trás, não dêem explicações em excesso, a tempestade está exatamente há 2 horas, começa na Asa Sul-central e alcançará a Asa 12 eliminando todas as vidas humanas que estiverem nesse trajeto.

    As palavras de um Bodisatva tinham um valor inexplicável desde os acontecimentos que transformaram o mundo e obedecê-las, rapidamente e sem questionamentos, provara ser algo sábio. Por esse motivo a mulher se levantou colocando a arma e uma bolsa nas costas, tomou a criança no colo e saiu correndo sem sequer se despedir.

    Mehal viu que ela investia toda sua força e energia naquela corrida para salvar sua vida e a daquela criança. Ele desejou sorte a ela e orou em silêncio, para que seu aviso aumentasse as chances de sobrevivência de ambos. Olhou novamente para trás, avistou a chuva ígnea e agradeceu em silêncio ao cosmo pela oportunidade que tivera na Asa-9 sul.

    Fazia pouco mais de uma semana que estivera no setor, encontrara lá um templo itinerante dos Herboristas-Divinos e deles recebeu uma sessão de Iboruasca peridural. Uma viagem transcendental que durou por longas e prazerosas 28 horas, o tempo exato de um dia.

    Graças àquela sessão ele conseguiu alcançar os reinos dourados, invadiu a corte dos Animais-Deuses que sequer notaram sua presença e lá descobriu sobre a tempestade ígnea libertada por demônios que logo castigaria os rebeldes do eixo da Asa Sul.

    Os sinais proféticos lidos meses antes no vidro e na rocha estavam certos, algo irritara profundamente os demônios. Mas os sinais não tinham deixado claro que os irritados fossem os Gregoraquinianos, a casta mais poderosa e controladora da realidade, cuja origem ninguém conseguira explicar até então.

    Sabia que, desde seu retorno da imersão etérica, estava sendo caçado pelos asseclas dos controladores. Enquanto corria, mesmo sendo um Bodisatva, uma emanação da sabedoria e do poder, estava sujeito às maldições que estavam reservadas aos que ousavam até mesmo perscrutar os meandros dos fios que compunham os planos dos malditos.

    Agradecia estar vivo aos Herboristas-Divinos, mas não podia deixar pensar quão útil teria sido ser agraciado por um dos Xamãs dos V8. Ao menos teria certeza de que conseguiria fugir a tempo da linha de destruição que estava em seu encalço.

    Respirou fundo sentindo o aroma de chuva no ar e se recompôs, esperava que a mulher e a criança conseguissem avisar muitas pessoas. Quanto a ele, apenas podia continuar correndo pela Asa Sul e informando também o máximo de pessoas que conseguisse.

    Mal cruzara os limites da Asa-12 Sul chegando a Terriscura quando a chuva de fogo finalmente alcançou a seção da Asa. Ela começara lentamente e logo os ruídos das chamas se iniciaram. Mehal se sentou e assistiu ao festival de beleza torpe que era aquele fenômeno, sabia que os malditos Gregoraquinianos certamente tiveram uma grande margem de sucesso em seu plano.

    Mesmo sendo um Bodisativa, por onde andou foi considerado louco por muitas pessoas, e tendo de provar sua razão perdeu tempo precioso para que elas pudessem salvar as próprias vidas. Nem todos foram receptivos quanto aquela mulher e a sua criança.

    Na maioria das vezes aquelas tantas pessoas não estavam preparadas para abandonar suas vidas de forma tão repentina, elas trabalharam duramente para conquistar condições melhores e mesmo sabendo que ele era um Bodisatva e, os avisava de algo inevitável, não estavam prontos. Se em toda sua jornada tivesse salvado mais de 10 vidas, seria muito.

    Após as primeiras gotas de fogo tocarem o solo, a terra reagiu cuspindo fumaça e chamas em colunas de tamanho titânico, que iam além de onde a visão alcançava, sem, no entanto, ferir o solo, plantas ou animais. Apenas o homem e o que era fruto do suor e do sangue do homem eram consumidos naquela onda infernal que deixava um odor terrível de decadência para trás.

    Os olhos de Mehal lacrimejaram tanto em tristeza quanto pela agressão daquela lufada transparente, imaginava quantas vidas deixaram de existir na Asa Sul. Lembrou de como desejou durante toda aquela jornada trocar de lugar com cada uma das vidas que seriam queimadas rapidamente, como pólvora, e prosseguiu em pensamentos martirizantes, em sua maioria.

    Tivera tais desejos em vão, sabia seu papel e entendia seu propósito no mundo. Deixou então que as lágrimas corressem livremente e aguardou que a dor que feria o peito se acalmasse, esperou que ela repousasse com a certeza de que não seria para sempre. Repetia para si mesmo de forma velada: Isso não é para sempre!

    Mehal ficou naquele lugar por mais três dias enquanto aguardava que o fogo se extinguisse. Durante esse tempo, em seu coração, uma mistura estranha de sentimentos conflitantes, ansiedade e compreensão do ritmo de cada evento, davam a certeza de que a dor causada aos homens pelas chamas estava apenas no princípio.

    No terceiro dia sua solidão foi interrompida enquanto observava o fogo perdendo força, mas persistindo, daquele inferno cíclico surgiram as primeiras sombras dos mortos pela punição demoníaca.

     Pobres e perdidas eram elas, chegaram se arrastando e sussurrando, em dor e fúria sem ter sequer forças para gritar. Em seus olhos e nas poucas palavras entendíveis que pronunciavam,  demonstravam o desejo pela carne de Mehal, por toda experiência que ela possibilitava e que fora tirada deles por criaturas que sequer entendiam.

    O Bodisatva olhou para o alto procurando nas estrelas antigas um caminho, instrução e uma reflexão. Quando avistou a estrela que estava exatamente sobre sua cabeça, fez uma invocação à essência da Alma do Mundo, como aprendera no ápice de seu treinamento, e em retribuição recebeu do universo um relâmpago que iluminou sua mente.

    A carga de energia desceu dourada atravessando até mesmo a densa Mortalha que rodeava o planeta e, ao se chocar contra o corpo do Bodisatva, incendiou o chão em prata, formando uma Mandala com símbolos como os que ele carregava no braço

    Na divisa do fogo que não sumia e da terra mais escura que existia, o Bodisatva entrou em comunhão com o universo ao iniciar sua verdadeira missão, livrou-se do que cobria seu corpo, tomou o colar de contas que guardava em sua sacola e sentado em lótus perdeu-se na imensidão das ondas do tempo.

    Os dedos corriam pelo colar de contas de forma contínua, cadenciada e quase automática acompanhando as palavras vigorosas que Mehal proferia em sua oração. As chamas prateadas que outrora marcaram o chão sumiram, deixando em seu lugar uma luz de mesmo tom sendo emanada pelo homem que permanecia sentado.

    Da terra em chamas vieram então as primeiras serpentes negras. Elas se aproximaram rastejando e circundaram à sua volta, tentando lhe afastar daquele lugar sem sucesso. Não demorou muito para que até mesmo o colar de contas de oração se transformasse em uma víbora enrolada no braço, tentando fazer com que ele se cansasse pelo peso, que experimentasse o frio e a dor como se tivesse sido envenenado, mas ele não era mais o mesmo homem.

    As serpentes voltaram para dentro da área das chamas, começaram a se espalhar e a tocar aquelas sombras e, como se o mundo se transformasse, a fronteira entre Terriscura e a Asa-12 Sul desaparecera, transformando-se em um campo de desolação espalhado para todos os lados. Aos poucos a Asa-12 deixou de queimar, tornou-se como Terriscura, e em ambas começou a cair uma chuva ácida, incapaz de trazer conforto ou de matar a sede daquelas sombras.

    Mehal não sabia mais por quanto tempo estava sentado, sua mente não se fixava em ponto algum e fluía canalizando a energia da Alma do Mundo, sedenta por acolher os filhos de seu ventre terreno. Sendo o veículo cósmico, permanecia ali, fazendo como movimento unicamente a troca da conta com seu polegar e o dedo médio, em honra aos homens, aos deuses e aos antigos.

    As sombras tornaram-se curiosas conforme recobraram suas forças e passaram a rodear o único foco de luz e brancura naquele reino imenso e purgatorial. Com o tempo, tiveram seus pensamentos infectados pelo veneno das serpentes e logo estavam totalmente contra Mehal, odiavam-no não apenas por estar ali e não ter morrido como eles, mas também por ter sido inútil em seu aviso. Elas queriam retornar à carne.

    Perdendo-se em uma sucessão de eventos que não era precisa, tudo podia ter acontecido em um segundo Terreno ou mesmo na eternidade da existência de um universo. Mehal novamente prestou atenção à sua volta e aquelas sombras dos homens transformaram-se em monstros, corruptores e controladores, tiranos que tomavam à força tudo que por algum motivo lhes aprazia, parecia interessante ou representava alguma ameaça.

    Como uma corte bizarra os mais fortes se organizaram, fizeram com essa força o possível para afastar todas outras sombras que por um momento deixavam-se tocar pelo sentimento de ver em Mehal, o homem que permanecia brilhando no vale das sombras e da morte, um homem que estava ali pacientemente por eles.

    Alguns se arrastavam tentando se aproximar, os mais fortes respondiam tal ousadia jogando-os longe, espancando-os em bando e os afundando em poças onde não podiam morrer, mas onde amargavam por muito tempo antes que conseguissem recobrar a força anterior.

    Mehal, que estivera com a mente em lugar algum, pois estava espalhada pela imensidão do universo, ouviu um chamado à sua manifestação consciencial, seu eu, e com isso concentrou-se em um único ponto e lugar, a luz prateada faiscou pela primeira vez em tempos e seus olhos abriram, encontrando no horizonte de eventos aquela mulher e a criança que o capturaram em algum dia perdido no passado.

    Os olhos que se abriram em espanto por testemunhar que o aviso não fora o suficiente logo causaram mais dor seguida de compaixão, juntos, esses sentimentos se transformaram em um fruto entalado em sua garganta sufocando e causando pânico. Quando Mehal conseguiu cuspir esse fruto, foi como se o soco de uma montanha se deslocasse pelo ar.

    Todos os monstros foram golpeados por esse soco e de dentro deles voaram as sombras das pessoas de outrora, mostrando que aquela substância negra e pútrida era algo que os envenenava ao mesmo tempo em que os envolvia.

    Cada um deles foi jogado para longe daquilo que os tornava forte naquele cenário decadente, caíram no chão revelando-se simples sombras tomadas pela inveja, seres perdidos que desejavam ter a esperança demonstrada pelas almas que se esforçavam e se arrastavam em direção ao Bodisativa.

    Finalmente a moça conseguira ver Mehal, a ele rendia gratidão e carinho pelo aviso e tentativa de fazer a diferença, mesmo quando ela apontou uma arma contra sua cabeça. O carinho existia por tal tentativa ser feita mesmo tendo ele, o Bodisatva, poder suficiente para destruí-la sem sequer vê-la.

    Essa gratidão permitiu-a cruzar a barreira dos mundos mantendo boas lembranças a respeito daquele homem. Nele confiava e queria encontrá-lo ao menos para lhe agradecer por seu esforço e tentativa. Mal podia imaginar que, a pureza do sentimento carregado por ela sinalizou como um farol no meio da imensidão do um oceano em que Mehal estava imerso.

    Antes que Mehal pudesse sequer se levantar o resto das carapaças de todos aqueles monstros que caíra no chão começou a se mover. Unidos em uma massa orgânica exatamente como uma pequena poça de negrume, ela oscilou e ergueu um pilar negro serpentinamente na forma de um dos Gregoraquinianos: Leviathan!

    Não era o demônio em sua total presença, mas sim uma manifestação de sua existência e de tudo que ele representava. Pela união da miséria de todas as almas sofredoras se fazia possível, e mesmo não sendo o maldito em sua plenitude, era tão consciente, torpe e perigosa quanto a criatura que atravessara os planos décadas atrás.

    Tomando a forma de uma Píton, o monstro enrolou-se para atacar com um bote, abriu sua boca em pura maldade e provocação à Mehal exalando o odor excruciante de uma criatura que vivera no âmago da maldade humana, que fizera sua morada em um dos cantos mais inóspitos para qualquer forma de vida.

    Julgava certa sua vitória já que a inveja que rondava aquela terra maculada pela desolação era tamanha que a soberba nublou qualquer julgamento. Não mais esperou e atacou certa da vitória, seria um golpe e uma morte.

    Talvez como uma manifestação velada dos antigos, o colar de orações de Mehal, que por tanto tempo e sofrimento permaneceu ali sendo manipulado, como prova e representação da caridade que ele tomara por missão, uniu-se aos glifos de seu braço numa explosão de energia celeste e projetou-se tomando a forma de outra serpente.

    Ora, a batalha entre aquelas duas criaturas poderia ter durado por tempo infindável, pois embora não fossem a manifestação última, possuíam em si quantidade de poder suficiente para destruir algumas cidades com um estalar de dedos.

    O desequilíbrio veio quase que anunciado quando a mulher e a criança ao longe se ajoelharam novamente, como fizeram uma vez em vida, agradecendo ao sacrifício e à caridade daquela ocasião. No mesmo instante o pouco negrume que as tomava tornou-se pó estalando no ar e desaparecendo, elas tornaram-se claras, pálidas e radiantes com o mesmo tom prata que antes envolvia Mehal.

    As sombras viram que durante todo aquele tempo em que ele permanecera sentado e orando, estava espalhando sua luz como raízes pelo subterrâneo, perceberam que até mesmo quando ele sabia que todas elas o odiavam, isso não o movera.

    Conforme percebiam isso, algumas fugiam em pânico, não estavam preparadas para a libertação ainda. No entanto algumas outras compreendiam finalmente o que as rodeava, entendiam a morte e aceitavam o destino, essas repetiam o gesto da mulher e da criança.

    A manifestação de Leviathan enfureceu-se, e em um torvelinho puxou de cada uma das sombras a substância pegajosa e negra que os envolvia, com isso, cresceu em tamanho e em força e preparou-se para desferir um ataque mortal naquela serpente e por fim naquele homem.

    Livres do domínio da perdição e da inveja, as vidas ceifadas na Asa Sul agradeciam a Mehal, esse ato fazia com que o corpo de Leviathan fosse consumido aos poucos pela mesma chama que caíra do céu como punição aos rebeldes, no entanto o aroma deixado pela sua fumaça não era agressivo ao olfato, mas doce e suave, como a renovação do orvalho da manhã.

    O demônio não soltou um grito nem entrou em pânico, claro que não o faria, sua consciência e seu verdadeiro corpo estavam distante, seguramente guardados e fora do alcance daquela pequena manifestação da virtude contrária à energia que o alimentava.

    A mulher e a criança se aproximaram de Mehal e disseram que a parte dele ali já estava feita, o Bodisativa a olhou pela primeira vez nos olhos e naquela ilusão branca que se tornara o corpo dela, viu ternura e gratidão verdadeiros.

    Ouviu então uma suave música que tomou o lugar da voz da mulher, seu corpo sentiu que era hora dele voltar para continuar sua missão, a criança se afastou brincando e correndo enquanto a mulher deu um beijo em sua testa.

    O universo girou em harmonia formando uma espiral cujo fim Mehal não podia precisar, meio ao movimento espiralado mal percebeu abrir e fechar os olhos,  a espiral por fim terminava em um pedaço belo e raro de terra, coberta de gramas e flores e, às vezes, como uma conquista da humanidade, até mesmo um vívido raio de sol conseguia chegar ali.

    Levantou-se e olhou em direção à velha placa de divisa de Terriscura com a Asa Sul, ao contrário do que fizera antes, sem saber quanto tempo no passado fora, entrou na Asa-12 Sul e seguiu em frente.

    Seu sacrifício o conduzira ao entendimento de certas minúcias da alma humana, revelara a ele que Leviathan era um dos Gregoraquinianos e que todos eles partilhavam uma mesma origem, em cantos obscuros das almas dos homens.

    Entendeu que a manifestação primordial da inveja ganhara consciência e um nome na forma do demônio. O entendimento e a compreensão de tais fatos o elevaram e demonstraram que a caridade era a única arma contra aquela criatura, a única arma que o destruía duplamente:

    Atacando sua contraparte, e possibilitando que aqueles beneficiados por ela, pudessem estender essa benção ao próximo.

    Embora o mundo tivesse se tornado um lugar desolado e pútrido, Mehal descobrira na alma humana o antídoto para um de seus muitos males. Ciente disso, retornou a seu caminho onde sua caridade ainda tocaria muitas almas e vidas para frustração dos mais obscuros planos dos Gregoraquinianos.

  • Um conto de Dragões e Magos

    Um conto de Dragões e Magos

    Era uma vez…

    Em um reino muito, muito distante de magia e aventuras, existia um majestoso dragão vermelho, cuja sabedoria trouxe pessoas de todos os cantos do mundo. Lá, ele os ensinou a entrar em aventuras incríveis que mudariam suas vidas para sempre.

    Mas este Dragão tinha uma maldição sobre ele e, com o tempo, começou a ficar ganancioso e louco, arruinando tudo o que conquistou e construiu ao longo dos séculos até que um grupo de magos da costa veio em seu auxílio. Eles usaram suas cartas mágicas imbuídas de uma nova forma de feitiçaria antiga para obter os recursos para um bálsamo de cura que afastou a loucura do dragão.

    Quando a loucura acabou, o dragão viu que todo aquele reino estava em ruínas, que a glória daqueles dias se foi e ele se ressentiu da sua incapacidade de se livrar daquela maldição. Os magos se aproximaram dele e ofereceram uma aliança na qual forneceriam recursos e o dragão poderia colocar sua sabedoria em nome de todas aquelas pessoas novamente.

    Foi uma época próspera, com aquela aliança, o dragão e os magos elevaram a glória daquelas aventuras de formas nunca antes vistas. O reino cresceu a distâncias incríveis, com uma infinidade de novas aventuras acontecendo todos os dias. Novos heróis nasceram, e foi uma época de duelos gloriosos de espada ou feitiçaria, até mesmo um ronin de um reino distante apareceu em sua armadura de folha verde.

    Os magos, embora tivessem o poder de serem imortais, optaram por não serem liderados pelo mesmo mago para sempre, mudando de líder de tempos em tempos. Alguns séculos depois dessa aliança, os magos foram abordados por seu patrono, aquele que fornecia o mesmo tipo de aliança que eles faziam com o dragão no passado.

    E com as palavras mágicas amaldiçoadas, o patrono lançou a maldição sobre os magos, que assim como no dragão, instigou neles a ganancia, não se importando com o reino, mas tentando controlar todos os poderes do Dragão para uso exclusivo do Patrono.

    O que o patrono e os magos esqueceram é que quando a aliança foi forjada, eles também construíram um golem, que jamais fora ativado, pois o objetivo do golem era de servir de modelo para outros parceiros iniciarem suas próprias aventuras. Quando os magos usaram seus poderes para controlar o Dragão e iniciaram seu reinado de opressão, a velha magia da aliança ativou aquele primeiro golem.

    A energia mística foi canalizada para o golem, tornando-o azul e, com vapor emanando dele, marchou contra os magos e o dragão, alcançando a vitória após uma longa batalha e libertando o povo cativo. Os magos então, livres das palavras malditas de seu patrono, começaram a reconstruir aquele próspero império com a ajuda de todos que voltaram a confiar neles.

    Essa foi uma época de ouro neste reino, várias pessoas de todos os lugares começaram a acreditar nessa causa e mobilizaram suas forças para torná-la ainda maior, alcançando novas fronteiras a cada dia. Alguns séculos depois, um grupo de aventureiros teve tanto sucesso que a glória do reino ultrapassou todos os limites e aquela era de ouro parecia que seria ainda melhor que a primeira.

    Mas novamente, depois de 22 séculos, o Patrono acordou novamente, lançando suas palavras amaldiçoadas, mas dessa vez, ele planejou que não haveria ninguém entre ele e seus objetivos e na sombra ele lançou a maldição em todos os magos, para que eles também trabalhassem na sombra para, mais uma vez, tentar usar o Dragão com seus poderes crescentes não apenas para controlar o reino, mas também para espalhar o terror e a tirania sobre todos os outros reinos.

    No entanto, nem todos os magos foram enganados pelo Patrono, alguns deles conseguiram manter sua sanidade, enviando sinais secretos para as pessoas do reino, alertando sobre o que estava para acontecer, com uma onda de opressão ainda pior que a anterior, 23 séculos atrás.

    Não existiam muitas pessoas que viveram aquela época, mas a tradição foi repassada, e quando os presságios foram vistos, o próprio povo do reino começou uma revolução, eles gritaram e lutaram da melhor maneira que puderam, mas o Patrono e seus magos malignos eram uma ameaça que eles não suportavam.

    Um herói apareceu entre aqueles lutadores, um Kobold azul segurando uma Bandeira Negra, com memórias dos velhos tempos. O inesperado herói foi capaz não só de ferir os magos, mas também de tirar sangue suficiente para acordar aquele velho golem azul dos tempos antigos que em sua peregrinação aprendeu sobre um sábio Orc muito sábio e poderoso, que não só tinha o poder e a conhecimento para acabar com esses ciclos amaldiçoados de uma vez por todas, mas também, poderia fornecer esse poder para todas as pessoas, para que algo assim nunca mais acontecesse.

    O Kobold, o Golem, um Samurai Verde, um mago Sobrenatural, entre outros heróis, com e sem nome, começaram sua busca para trazer aquele velho Orc, enquanto todo o povo mantinha a revolução e os magos na costa. Naquela época, o Patrono e os magos estavam com medo, não porque as pessoas pudessem destruí-los, mas porque naquele momento seus poderes não eram eficazes contra essas pessoas.

    Só a lembrança desse velho Orc já fez os magos tremerem e tentarem acabar com a guerra com falsas promessas, mas ninguém mais caia naquele encanto. Enquanto as pessoas mantinham os magos incapazes de agir, os heróis, liderados pelo golem azul, começaram para lançar o feitiço para trazer aquele Velho Orc Sábio e o que acontecerá a seguir, ainda será revelado…

    Continua!

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