AxisMundi, a herança de Simha

(soberba)

Sentou-se em uma cadeira acabada, velha e feia, ainda assim forte e confortável. Sua casa era modesta, nunca primou pelo. Sentado na varanda, observava as colinas ao longe, belas e ancestrais. Os olhos percorreram o horizonte sombrio enquanto suspirava, lembrou da época em que o Sol ainda era visível, quando a Mortalha não existia. Sentiu o cheiro do pão no forno e riu da ironia de ter sentado.

Voltou, pôs a mesa, toalha rendada, lembrança do enxoval de casamento, um pequeno pote de manteiga, o último que lhe restara, e pão quente espalhando o aroma de alecrim pelo ar. Bebeu um gole de café que renovou a energia de seu corpo. Cortou o pão e espalhou por ele uma quantia generosa de manteiga. Serviu-se.

Assoviou e dois passarinhos avermelhados pousaram na mesa, receberam um pouco de farelo e se deliciaram com aquele banquete. Era ciente de sua boa vida e de como era um homem afortunado.

Satisfeito, sacou um pedaço de fumo em corda e começou a enrolar um cigarrinho. Antes de acendê-lo, pingou algumas gotas de um pequeno vidro e por fim riscou o fósforo. Com a primeira tragada sentiu na garganta o frescor do orvalho da manhã, aquele mundo podia ser ao mesmo tempo tão feio e tão belo, mas completamente diferente de cinqüenta anos atrás. A primeira onda veio.

– Olá pai, benção – era a primeira vez que o filho falava com ele desde a morte da mãe.

O pai olhou para o homem e viu nele apenas a sombra do garoto de outrora. Percebeu que fizera seu caminho na vida além daquelas montanhas e retornara, talvez para relembrar seu passado visitando o velho pai que não tinha muito a oferecer. Não era mais um garoto, mas sim um grandalhão cuja altura passava muito de dois metros. Sorriu para a figura que se curvara à sua frente, deu-lhe a mão que foi beijada e respondeu:

– Que Eles te abençoem, meu filho.

Lágrimas corriam dos olhos daquele brutamontes cujas garras tão afiadas podiam trespassar o corpo do velho pai, ele as retraiu e limpou as lágrimas de seu rosto leonino, se ajoelhou sentando nos próprios pés, ficando ainda assim na mesma altura que o ancião e tomou suas mãos abraçando-as com carinho entre as suas.

– Desculpe por ter me afastado, pai, eu o fraco naquela época, quando na verdade o fraco fui eu por não suportar a morte de minha mãe, a mulher que por tanto tempo esteve ao seu lado.

A risada carinhosa do velho quebrou aquele clima sepulcral, ele tirou as mãos do meio das de seu filho que fizera isso demonstrando ter força e poder para protegê-lo e as envolveu nas suas, bem menores, finas e terrivelmente maculadas pela idade.

– Não existe culpa aqui, você seguiu o seu caminho e vê-lo novamente é felicidade o bastante para esquecer discussões inúteis. O passado apenas é isso, passado.

 Sentindo as mãos acolhidas e o calor terno de seu velho pai, a emoção do reencontro arrematou o que restava de receio, deu-lhe um grande abraço e abriu um sorriso que, com suas enormes presas felinas, assustaria qualquer outra pessoa, mas ao pai conseguia apenas fazer com que um leve suspiro fosse dado.

– Você cresceu, meu filho, mudou tanto que apenas seu pai poderia reconhecer aquele garoto com cabelo de palha. Arc… – foi interrompido antes que disse o nome de batismo da prole.

– Me chamo Simha agora, pai. Faz parte do que me tornei. – Disse em tom de reverência.

– Entendo, lembro de um desenho de minha época, com um filhote que teve de fugir para se tornar um verdadeiro Leão, só então pôde voltar para casa e tomar seu lugar de direito. Ele tinha o mesmo nome!

– O nome desse leão era Simba, pai, e eu não vim tomar lugar algum, apenas consegui enfrentar meu próprio orgulho e decidi prestar uma visita a um ente amado de minha primeira vida.

– Simha, Simba, é tudo parecido. E como isso aconteceu? – apontou para as garras.

– Uma longa história pai, envolve um deus caído dos céus, quase morto. Um pouco de feitiçaria antiga e muito de procedimentos científicos que aterrorizariam os nazistas mais inescrupulosos.

– Uma longa história pede um longo gole de meu “desincrustante de ossos”.

– E você ainda fabrica isso pai? Aposto que até guarda no mesmo lugar. Não se levante, eu vou pegar. – O sorriso do filho revelava um filhote, e naquele momento o pai percebera a verdadeira felicidade de ser pai.

– ACORDE, IDIOTA!

Com um soco no queixo o velho foi jogado para longe de sua mesa a céu aberto, ainda atordoado com as lembranças proporcionadas pela onda química, tornou a olhar para a Mortalha, tentando fazer a cabeça parar de girar.

Tentou se levantar, mas o corpo não respondia tão bem após a oitava década de vida, sentou-se ali mesmo no chão de grama não cortada e limpou o sangue que corria da boca. Cuspiu o pedaço de dente solto e olhou em direção a seu agressor.

Alta, mas bem menor que seu filho, a criatura à sua frente possuía uma beleza intrigante, andrógina, magra e alta. No lugar de cabelos subiam labaredas de fogo que davam à sua pele metálica tons hipnotizantes.

– São vocês então. Minha resposta continua a mesma. Não irei ajudá-los nem mesmo morto! – Disse as últimas palavras cuspindo sangue.

Quando a vista voltou a obedecê-lo, viu que eram quatro as criaturas, três delas eram iguais em sua aparência andrógina metálica que mal podia ser descrita como humana, mas a quarta ganhava em todos os aspectos se estivesse em uma competição de beleza estronha.

– Lúcifer!

Aquele que um dia sentara ao lado de Iavé, que caíra por desejar demais, estava à sua frente com seu corpo semelhante ao de um centauro, com seis patas, imponente e arrogante. Plumas como a de pavão saiam de suas costas formando asas de enorme envergadura logo atrás de seus braços. O rosto de criança mimada com seis olhos, não chamava tanta atenção unicamente pela série de chifres variados que brotavam de sua cabeça, entrelaçando bode, touro e outras criaturas inexistentes antes da Mortalha.

A presença dele indicava que certamente eles o levariam dali, não importando se fosse vivo ou morto. Lúcifer tinha planos de como utilizá-lo em sua guerra interminável, ainda desejava capturá-lo para forçar o filho, Simha, a abandonar a linha de frente que tanto causara problemas nos últimos meses. Aquilo era novo e deixava claro que medidas desesperadas tinham sido tomadas.

– Relembrando o encontro com aquela monstruosidade que tu chamas de filho? O pecador que ousou tomar o fruto da carne do altíssimo para si? Tua ciência seria mais bem aproveitada em minhas fileiras, lhe garantiria longa vida e riqueza, não um pedaço podre de madeira na terra de ninguém! – Lúcifer rogou aquilo e a cada palavra proferida sua expressão se transformava.

– Sempre soube de sua arrogância, Satanael! – percebera quem ele era na verdade – Mas sinceramente, atacar um pobre octogenário em sua própria terra, pois não se trata de “terra de ninguém”, foi além das mais estúpidas coisas que você fez em sua existência

A comitiva enfureceu-se revelando feições semelhantes à dos esqueletos pútridos que eram por trás daquela máscara de ilusão, esticaram suas asas translúcidas como as das borboletas e pularam em cima do velho em ódio pela ofensa feita a seu mestre.

Mas aquela era a terra dele, e um homem que chegava aos oitenta anos naqueles dias não era uma corça indefesa. Com um assovio, uma criatura humanóide, feita de bulbos e raízes levantou-se do solo e emitiu um grito estridente que fez com que os três caíssem na terra. Ajoelhados, impotentes tentando se proteger daquele som.

Gritavam sem que pudessem ser ouvidos, sofriam sem que fossem auxiliados, resistiram em agonia até que as labaredas que tinham por cabelo se esticaram tentando fugir da rajada sonora e explodiram junto à cabeça em fogo e sangue.

O rosto de Satanael e parte de seu corpo estava coberta de sangue e algo que talvez fosse os miolos dos mortos. A criatura continuava desferindo seu uivo metálico e cortante. O demônio inclinou levemente a cabeça e a criatura explodiu dando fim ao som.

Abriu a boca e dela saiu uma língua sangrenta, cheia de ventosas e longa como uma serpente, passando pelo corpo e limpando os vestígios de sangue, terra, raízes e tudo mais que tivesse maculando a beleza de sua imagem. A criança que lhe dava rosto tornou-se monstruosa, embora não fosse ele, Lúcifer, era certamente um Gregoraquiniano, um dos Sete malditos que controlavam o mundo desde a época que a Mortalha cobriu o Sol transformando todos os dias em tardes nebulosas.

– Uma Mandrágora. Devo lhe dar meus parabéns pela criatividade e habilidade em cultivar uma de tal tamanho, tão obediente a ponto de morrer por você. Mas de onde vieram esses – apontou para os três corpos que caíram sem cabeça – eu posso trazer muitos mais – abriu os braços e o espaço atrás de si se dobrou revelando um lugar longínquo, onde exércitos de criaturas estronhas como aquelas se enfileiravam.

– Mas não – cruzou os braços e o espaço fechou atrás de si dando lugar à antiga paisagem – eu irei levá-lo comigo para que perca um pouco de tua esperança e arrogância nas mãos de cada uma delas, para que então perceba a diferença que existe entre um DEUS e um homem.

– Acabou seu espetáculo, Satanael?

-NÃO… ME… CHAME… POR ESSE… NOME!

– Você prefere qual, enjeitado do papai, bafo de enxofre, escória de anjo… RASCUNHO da Humanidade? – O velho sabia que ele não era Lúcifer, e sim uma criatura que tomara para si tal título na ausência do verdadeiro dono.

Chamá-lo de mal encarnado, ou mesmo de “grande mentiroso” causaria apenas risos, apostava que compará-lo a um rascunho, das criaturas que tanto subestimava, conseguiria fazê-lo descer do pedestal.

A confirmação veio junto a um coice que afundaria seu peito, não tivesse o velho sido tragado pela terra no exato momento. Funcionara perfeitamente!

Esconder-se na terra não o retardaria por tanto tempo, mas garantiria a diversão de ver o demônio enfezado. Logo, Satanael começou a cuspir rajadas que abriam enormes buracos no solo, berrava ensandecido sobre como sua forma era bela e superior a toda a humanidade.

O velho saiu da terra em um lugar afastado e gritou:

– E ainda assim tem o rosto de uma criança, RASCUNHO! – E voltou a ser engolido pela terra mudando sua localização.

A cada novo grito o demônio denunciava sua posição, amaldiçoava todos os homens, seu próprio pai e, principalmente, aquele velho que ele iria esmagar sob seus majestosos cascos adamantinos. E a cada nova maldição, o velho controlava a terra para que o levasse para longe, assim ele poderia fazer por anos se ainda tivesse o fôlego e o poder de sua juventude.

Logo, o pulmão intoxicado começou a falhar, estava maltratado demais pelo fumo e pela química que ele mesmo extraía de seu cérebro. Era ela que sempre pingava em seus cigarros, lembranças vívidas que sempre revisitava.

 Como era comum, quando o ar começava a lhe faltar, o cérebro se assustava e causava um flashback. Naquele momento graças à química que ainda estava em seu organismo, a lembrança foi a do dia em que tornara a ver sua prole.

– Eu preciso guardá-la e nutri-la, meu filho. Por isso não posso ir com você, foi meu juramento aos últimos sobreviventes do Grove, o grupo de minha fé.

– Entendo você agora pai, pudera ter entendido antes de ir embora achando que você permanecia apenas por não conseguir se livrar da memória de minha mãe.

– Seu destino era longe daqui, nem mesmo nossos ancestrais poderiam imaginar que fosse possível acontecer algo como o que aconteceu com você. Nesses tempos de desolação, você é uma das poucas luzes que conseguem atravessar a Mortalha prometendo um novo amanhecer.

– Não pense assim meu pai, estou longe de ser um ideal de pureza e bondade como você me julga. Minha aparência deixa isso bem claro.

– Continua tolo, possuí um Deus em sua carne e em seu sangue e não compreendeu ainda que bondade absoluta é uma ilusão e que pureza verdadeira é algo que não conheceremos nesse mundo? – Riram junto após essas palavras, quando o filho entendeu por fim seu papel nas tramas do destino.

E então Satanael conseguiu atingir a proteção onde o velho se encontrava. O pulmão ávido por uma dose de ar fresco re-oxigenou o cérebro quando ele fora cuspido pela terra e a lembrança foi interrompida. Arfava, com dificuldade em respirar, fazendo com que pela primeira vez temesse pela própria vida, mas morreria com seus segredos.

– Me dê uma razão para que eu não o mate de vez aqui – e apontando um dedo, fez com que o corpo do velho flutuasse no ar, tirando o do contato com a terra que tanto lhe dava poder – apenas uma razão para que eu não faça de você o mesmo que seus antepassados faziam dos velhos mórbidos, inúteis e caquéticos como você, destroce seu corpo em pedaços e alimente a terra com eles!

Não fora tempo suficiente para que o velho recuperasse o fôlego, mais uma vez o oxigênio faltou em seu cérebro e a alucinação visual o atacou revelando o que ele tentara proteger por tanto tempo com sua vida.

– Ela é tão velha assim, papai?

– Sim meu filho, esta árvore é mais velha que a humanidade, não duvidaria que fosse ainda mais velha que os deuses.

– Você disse que ela fora destruída pela mão do homem e transformada em quinquilharias baratas, como ela pode estar assim enorme e tão viva?

– Foi esse meu juramento para o Grove, Simha, meu juramento era o de que eu protegeria com a minha vida se necessário, essa árvore que foi trazida de volta ao mundo dos vivos com o sacrifício de cada um de meus irmãos e irmãs em fé. Incluindo sua mãe.

– Então não foi um suicídio?

– Nunca algum de nós cometeria suicídio, meu filho, a vida é a coisa mais sagrada para nós desde o tempo de nossos ancestrais. Todos eles sacrificaram-se para que a árvore pudesse ter uma chance, para que pudéssemos corrigir o erro feito pela mão do homem.

– Tantas vidas por apenas uma árvore, o que a faz ser tão importante?

– Não sabemos exatamente como aconteceu a abertura entre os mundos, aquela que fez com que os Gregoraquinianos conseguissem invadir nossa terra com todo seu poder e fazer com que toda força sucumbisse, mas sabemos que essa árvore era o que mantinha a porta entre os mundos fechada. – Deixou de encarar o filho e as palavras que se seguiram, fluíam através dele diretamente da própria árvore.

“Do corpo dos mortos eu me alimentava, separando, com minhas raízes, os mundos. A sabedoria dos homens da terra tratou de transformar o solo que me cercava em um cemitério, nutrindo com energia da vida, minhas raízes que afastavam a morte.

Mas o homem perdeu-se da Terra, perdeu-se do céu e das estrelas e olhou apenas para a própria mão, e perdido admirando sua própria existência eliminou aqueles que ainda tinham a sabedoria na busca insana do que poderia fazer, pela simples possibilidade de poder fazer.

E essa mão voraz nãose contentou em subverter tudo que movia e respirava, ela também teve de submeter o que era mais velho que os próprios deuses deles, que não se movia por pura gentileza para que a humanidade fosse possível.

Eu fui então arrancada, minha vida consumida para que o homem tomasse mais um espaço de terra sem se perguntar o porquê daquela terra ser intocada por tantos milênios que a mente não podia calcular. Privada de minha vida e de minha função, a ponte entre os mundos enfraqueceu, dessa forma os poderes que estavam trancados do outro lado, podendo apenas influenciar mentes frágeis e débeis, conseguiram influenciar aqueles que possuíam o sangue necessário.”

– E assim, de alguma forma, eles arquitetaram e conseguiram a abertura da ponte entre os mundos, para que não mais dependessem dos que os buscassem voluntariamente, que sacrificassem sua liberdade em troca de felicidade mundana e material. – O velho voltou a si, ciente de tudo que a árvore dissera através dele.

– Você entende agora, meu filho, a razão pela qual sua mãe e todos meus irmãos e irmãs na fé sacrificaram a própria vida. Entende o motivo pelo qual seu pai jamais deixou essa terra?

– Sim pai, finalmente eu entendo.

Esse teria sido o último pensamento da vida daquele velho quando os pulmões não tiveram mais força para puxar o ar e fazer com que todo o resto do organismo voltasse a viver. Esse teria sido o último pensamento se Satanael não estivesse mais uma vez vislumbrando a mente das criaturas que tanto subjugara, que tanto subestimava em sua existência. Era uma oportunidade com a qual ele jamais contara, e por esse motivo, trouxe o velho de volta à vida.

– Não será sua hora ainda, velho, você será mais útil para a minha Glória do que jamais sua patética existência sonhara. Vive e anda, pois das cinzas que são queimadas em meu nome, eu te trago de volta à vida.

O retorno do mundo dos mortos através de poder demoníaco é tão bom quanto voltar através do poder divino.  O corpo expurga todos os males e se recompõe alcançando a perfeição do ser. A diferença básica entre os dois processos é a dor.

Como a mitológica fênix que renasce das cinzas, voltar à vida é como ser consumido em chamas. O velho vivera sua vida plenamente jamais imaginando que isso aconteceria, assim como nunca sonhara que um dia seu filho se tornaria a coisa mais próxima de um deus. Aceitou a dor de bom grado, mesmo sabendo que ela era prenúncio de um sofrimento maior nas mãos de Satanael.

– Recomponha-se agora – disse o demônio ao homem que rejuvenescia na sua frente, vomitando para fora de sua existência o conhecimento sobre o caminho do mundo dos mortos, como era correto para os seres vivos – você ainda sofrerá mais se não me levar até essa maldita árvore.

O homem ainda flutuava impedido de tocar a terra, de onde poderia com a juventude recebida extrair força para ao menos escapar de seu algoz. Sabia que agora que Satanael conhecia a existência da árvore ele faria tudo para descobrir seu paradeiro, e graças a seus poderes ele certamente seria bem sucedido nessa empreitada.

– Lá, após aquela colina, você verá uma árvore negra, imensa e solitária em uma clareira. – Apontou para o norte.

– Vamos juntos, eu ainda irei saborear o terror em seus olhos quando vir essa maldita árvore queimando completamente e sumindo da existência. – O triunfo de Satanael fizera com que seu rosto de criança assumisse um sorriso de maldade, e seguiram rumo ao ponto indicado.

A Árvore de fato encontrava-se após a colina, era apenas a sombra da majestade de outrora, não tinha mais de dez metros de altura, contra os mais de duzentos em sua época áurea, mas ainda assim ela representava uma ameaça ao domínio dos Gregoraquinianos.

À primeira vista, Satanael lançou uma rajada de energia infernal que deixou em seu rastro terra árida e amaldiçoada, repleta dos urros de agonia dos que tombaram para lhe fornecer poder, no entanto a rajada ricocheteou em direção à Mortalha. Ele só precisava se aproximar mais dela.

De frente ao objeto odiado, Satanael viu que a árvore era rodeada de espíritos, eram eles os irmãos e irmãs do Grove que sacrificaram suas vidas para dar aquela esperança aos filhos que deixaram para trás. Um dos espíritos estava ajoelhado, exatamente no ponto onde a rajada ricocheteara.

– Vocês tentarão proteger essa porcaria até o fim de suas existências? Que assim seja! – Gritou com o orgulho e a vitória como manto.

Os espíritos estavam realmente prontos para cessar suas existências em prol da proteção, e Satanael estava tão obstinado quanto eles pela sua destruição. Seqüências de rajadas foram lançadas pelo demônio, quando ele percebeu que um dos espíritos se levantara abriu suas asas em busca de seu verdadeiro poder.

Por fim conseguiu destruir o primeiro espírito, e o segundo, o terceiro e assim sucessivamente até o décimo, então percebeu que seu poder não seria o bastante para destruir todos eles naquele momento. Seus olhos se voltaram para o homem e viu que ele encarava fixamente a imagem de uma bela mulher. Sabia agora como forçá-lo a revelar-lhe o segredo para sua derradeira conquista.

– Acabou Mael, você irá me dizer como destruir essa árvore ou o próximo espírito a ser reduzido a nada será o de sua esposa. Acabou nosso jogo de gato e rato, ou deveria dizer de um leão e corça? – Sorriu triunfante vendo o desespero no olhar de Mael, o homem que fora velho e experimentara o rejuvenescimento.

– De Leão e corça seria melhor.

As garras de Simha brilharam com um ar sanguinolento. Aquela a quem ele ameaçava ceifar a existência era sua mãe e, Satanael, tomado pela soberba, jamais se preocupara em visitar as lembranças completas de Mael. Se assim tivesse feito, saberia que o filho estava dormindo ali na velha casa, após ter feito um pão para seu velho pai.

O primeiro golpe do Leão enterrou sua pata no flanco de Satanael sem que ele tivesse sequer tempo para reagir, o sangue jorrou na cara de Simha pintando seu rosto para a guerra, mas o demônio não teria uma guerra. 

– A cada rajada de energia eu tinha de agüentar o impulso de sair da casa e pular em seu pescoço. – rasgou o flanco direito do corpo do demônio levando junto duas patas.

– Matar meu pai não foi o bastante, não é mesmo? – agarrou dessa vez uma das asas do demônio – você teria vivido para lutar outro dia se tivesse feito apenas isso, eu não seria idiota de enfrentá-lo. Estava ciente do valor de minha vida e de como meu pai estava pronto para ser sacrificado se assim fosse necessário.

– Saber sobre a existência da árvore não foi o bastante – puxou com toda sua força arrancando a asa de pavão que já estava coberta de sangue – você precisava saber sua exata localização e queimou ainda mais poder para trazer meu pai de volta à vida.

– Prudente teria sido confirmar a existência da árvore – atacou o peito do demônio que expelia mais rajadas ainda sem direção – e ter ido EMBORA – puxou a garra arrancando o que seriam tripas e outros órgãos – para voltar depois, com um plano para destruí-la.

– E então você mais uma vez falhou, achando que poderia destruir o espírito daqueles que sacrificaram suas vidas, para proteger algo que você teme – encarou-o de frente, segurando em seus chifres de bode, os mais protuberantes – e extinguiu o poder que ainda me fazia temê-lo.

– Mas veja, Satanael, você no fim das contas foi dominado pela Soberba, e não pôde sequer se defender – arrancou os chifres que vieram com parte do rosto de criança – de uma monstruosidade.

Simha estava coberto de sangue do demônio e o corpo tombara à sua frente, ainda vivo, mas incapaz de fazer qualquer coisa que não fosse sofrer.

– E você é tão – chutou a cara dele amassando ainda mais o rosto deformado – IDIOTA – chutou novamente – que deixou meu pai tocar a terra.

– Se assustou ao ver o Leão – ajoelhou-se e pegou um dos braços arrancando-o vagarosamente enquanto dizia – e agiu exatamente como uma corça, perdendo o objetivo e permitindo que ele executasse em você a vingança da terra.

O único olho de Satanael fechara, o corpo estava completamente disforme e não remontava em nada a beleza clamada outrora pelo Gregoraquiniano. Estava vivo, mas sem poderes, sem força alguma, podia apenas amaldiçoar a si mesmo por cometer tantas falhas em algo que poderia ser a garantia do poder e do domínio eterno.

– Acho que agora não posso mais chamá-lo de pai, pois você está mais jovem que eu. – Simha sorriu como um Leão sorriria por ter festejado o banquete de sua vítima.

– Me chame de Mael então. Ou de “amigo”, se preferir, Simba!

– Ora, é SIMHA!

E assim os dois olharam ao longe o espírito da mulher que fora mãe e esposa, que não mais tinha consciência ou memórias, apenas permanecia em essência ali guardando o que mais importava, o que daria esperança para a humanidade.

– Como você conseguiu chegar tão rápido? – A dúvida lhe incomodava.

– Eu não me esqueci de seus ensinamentos, parte de mim também é fruto dessa terra. Senti a energia do demônio se esvaindo e o chão se abriu como nos velhos tempos, para que eu salvasse o filho favorito “dela”.

– Hmmm, o que fazemos com esse lixo, Simha? – apontou para o corpo no chão.

– Aguarde Mael, meu sócio virá em alguns dias e, acredite, ele vai saber bem como cortar essa carne e fazer com que ela sirva para nutrir a Árvore. Apenas assim poderemos pensar em movê-la de volta para seu lugar.

– E o que te dá certeza disso?

Simha cruzou os braços, encarou a Mortalha e disse:

– Ele virá com seu Cutelo de Prata!

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