(preguiça)
O Zeppelin Oriental cortava o céu com suas chamas, oriundas das paixões dos ricos e poderosos, gente que não precisava se esforçar nesse mundo tão estranho.
Aquele era o único veículo que podia voar naqueles dias e foi nele que as meninas ouviram, pela primeira vez, as histórias sobre o mundo do passado, uma época no qual o céu era azul, nações existiam e a luz de todas as manhãs era tão brilhante que ninguém conseguia observá-la sem ter a vista ofuscada.
Uma dessas histórias era a de que as portas do Inferno se abriram, dois mundos se tornaram um, mas apenas um deles estava preparado para isso. Desde esses dias o Zeppelin existe e os que controlam o mundo são Sete.
Conhecidos por “Gregoraquinianos”, uma mescla amadora de “Gregório” e “Aquino”, dois homens de uma época mitológica que descreveram o que esses demônios representam, são a potência que subverteu a vontade do mundo e ditou a realidade desde então.
Muitas eram as histórias contadas à beira da mesa de carteado, nos quartos chiques, ao lado da roda de roleta-russa legalizada ou mesmo junto à tenda dos Confrades das Máscaras, os mesmos que possibilitaram que eu relatasse essa história.
Quando os Confrades das Máscaras embarcaram no Zeppelin foram tomados como uma nova atração. Alguns riram de suas máscaras enormes e de suas vestimentas estranhas, a última risada foi dada quando a máscara de um deles foi arrancada.
Como príncipes bastardos, filhos dos demônios com prole humana, sequer eles sabiam quem eram seus pais, apenas partilhavam deformações assustadoras e uma língua que ninguém mais entendia.
Numa das paradas do Zeppelin, na zona das gueixas pós-pagas de elite, duas meninas embarcaram, foram as primeiras a conseguir alguma risada dos confrades. Sevla encantava com seu ar infantil e maldade pura no olhar, Melangra, com seus lábios sempre avermelhados e o perfume exótico de outros mundos, contagiava.
Elas não gostavam de trabalhar, jamais precisariam sendo a companhia mais procurada a bordo do dirigível. Fizeram seu lar no segundo andar em um quarto decorado por dragões serpentinos, com um mapa exato do céu do momento no teto. Demorou um pouco para que os clientes deduzissem que eram irmãs.
Diziam gostar da antiga temática oriental e que essa era a essência do Zeppelin, por isso tinham sido tão bem aceitas. Uma vez, quando Sevla estava bêbada, disse algo sobre terem transado incansavelmente com o dono do lugar, não o dono do Zeppelin, mas algo sobre algum “espírito do lugar”.
Príncipes sem coroa, poderosos sem renome, os Confrades com as viagens para lá e para cá outra vez foram deixando o dirigível, fixaram moradia em terras distintas e com isso as duas irmãs perderam pouco a pouco o prazer que viam em tudo na vida.
Sevla demonstrou sua amargura colocando fogo em um cliente enquanto Melangra afundou-se ainda mais em seus mistérios. Sempre calada, comportava-se como uma esfinge.
Vez ou outra um Confrade subia a bordo e por alguns dias Sevla voltava a ser uma mulher feliz fazendo companhia a eles por todo tempo. Eles não eram mais poderosos sem renome, passaram a erguer coroas com imponência que assustou a muitos.
Os que sempre lhes respeitaram receberam suas honras, já aqueles que insistiram no passado em tratá-los como deformados ou tachá-los como escória, mesmo que em palavras não ditas, desapareceram no ar deixando para trás apenas propriedades como tributo.
Melangra não se interessava mais pela Confraria, nutria sim um imenso respeito por eles, lhes era solícita e eles prontamente respondiam a seus pedidos. Mas cremos que a falta de interesse era resultado de seu crescimento e de sua personalidade se definindo.
Conhecemos as duas em uma mesa de cartas, belas e jovens, quase morreram por conta de uma trapaça. Naquela época elas já tinham deixado bem claro que eram diferentes tanto por suas ações quanto por suas aparências.
Sevla, a mais nova, sempre usava roupas provocantes que demonstravam sua personalidade passional e intensa, mantinha o cabelo, em tom loiro platinado, curto e sempre espetado, vestindo a carapuça de rebeldia e irreverência.
Melangra tinha apenas dois ou três anos a mais que a irmã, mas sempre pareceu mais velha. Vestia-se de modo sofisticado, como uma antiga mulher de negócios, ar sedutor e dominante ao qual lhe faziam par os perfumes únicos e o cabelo loiro escuro cortado em Chanel, com franjas pontudas e longas.
Uma roda de cartas não é uma boa roda de cartas sem tensão e tesão. É apenas um passatempo de quem não tem nada para investir nem muito a perder. Naquela roda de cartas, tensão era a moeda e o tesão era proporcionado pelas duas com maestria.
Na época também era segredo para elas que fomos nós os responsáveis por organizar e liderar a Confraria, graças a isso, conhecíamos seus truques para roubar nos jogos aprendidos com os confrades.
Talvez deixássemos que elas nos limpassem até o último cobre, mas Sevla adorava correr sob o fio da navalha e se apostou para cobrir a aposta em sua maré de azar. Estávamos em quatro naquela mesa, as duas irmãs, um bruxo jovem que tentava usar seus poderes para lograr a mesa, e nós, vendo cada passo e tentativa de trapaça.
A jogada era chamada de “Três Espadas”, aprendida com a Confraria, levou o garoto a reconhecer a derrota e abandonar a mesa, com a previsão daquele cenário, nós sobrevivemos para a próxima mão e foi aí que Sevla se apostou.
Melangra não escondeu sua surpresa e a tensão que o temor lhe causara, analítica e inteligente, ela percebeu que tinha algo de muito estranho em nossa pessoa e nos olhou com seus olhos azuis faiscando e com aquela boca vermelha e carnuda anunciou uma seqüência virtualmente imbatível
Apostamos a nós também, Melangra conseguiu esconder a frustração após o choque inicial, mas o tempo preciso entre um segundo e outro que os mortais raramente conseguem perceber, eram como um mapa de reações para nós.
Com a aposta aceita cortamos o terceiro e último ato das Três Espadas dando a elas uma saída honrosa, a irmã mais nova se entregou de vez ao tesão e a mais velha à tensão. Sabia que se nós abríssemos as cartas e revelássemos sua trapaça, as penas seriam severas.
Não queríamos separar as duas irmãs, sabíamos que Melangra faria tudo para tentar manter essa união desde que as conhecemos e as observávamos de cantos escuros, com isso a aposta foi dobrada, Melangra também se apostou para tentar negociar a vida da irmã e acabamos por ganhar as duas.
O dono do Zeppelin tentou negociar, ofereceu grandes quantias e privilégios para que elas não saíssem dali. Certificamos de que ele receberia quatro garotas novas prontas para aceitar seus objetivos, pontuamos ainda que, elas não seriam nada comparadas às duas irmãs, mas que no final do dia, o caixa lhe daria um motivo a mais para sorrir.
Descemos no pouso seguinte e deixamos as duas fazendo suas despedidas. Encontraríamos-nos novamente dali duas semanas, quando o Zeppelin chegasse a Gólgota, nossa cidade. Era tempo suficiente para que elas terminassem de limpar bolsos para reunir uma quantia e tentarem negociar suas vidas.
Os dias se passaram, o Zeppelin despontava no Horizonte como um ponto pequeno e distante, desceu lentamente no ancoradouro revelando seu esplendor. A cabeça de dragão que fazia frente à cabine de comando cuspiu um jato de fogo, as luzes externas se acenderam e pela primeira vez eu parava para notar cada detalhe daquela construção belíssima.
O dono da embarcação se aproximou oferecendo uma “proposta irrecusável” para que deixássemos as irmãs ainda sob sua guarda. Vencido, ele voltou à embarcação enquanto pessoas subiam nela com bolsos cheios ou desciam com a vida por um fio. Então desceram as irmãs.
Chamamos aquele momento de primeiro encontro, era a única forma de fazer jus à beleza de sua descida, irradiando felicidade e dedicação para aquela nova vida que as tomava por assalto, Sevla fingiu um sorriso e Melangra fez a oferta.
Tomamos as mãos dela e as beijamos, a recusa foi feita olhando firmemente em seus olhos e aproximamos aqueles delicados e belos dedos de nosso coração. Ou do que seria anatomicamente o espaço para tal.
Ela fechou os olhos e foi guiada pelo ritmo que reverberava ali dentro fingindo ser um coração, sentiu uma sinfonia antiga e amistosa que clamava a felicidade de sua chegada. Sevla não entendeu quando Melangra lhe deu um sorriso e disse que finalmente elas estavam em casa, custou a acreditar e somente o fez quando recebeu o mesmo tratamento.
Elas eram bem diferentes, Melangra me conquistara rapidamente pela sua personalidade e beleza refinadas. Sevla, por sua vez nunca me atraíra, no entanto quando tocou meu peito, a reverberação tomou conta de meu corpo e mente, me deixando como um mero espectador. Belial encontrara uma amada.
Seria errado dizer que ele vive dentro de mim, pois ele não é apenas um, mas sim Legião. Ainda, depois de tantos anos sem envelhecer, não sabemos mais quem vive dentro de quem, apenas que a personalidade Belial é a que tem por mais tempo repousado.
O V8 fumegante nos esperava junto ao xamã que o conduziria. Antes que nos aproximássemos dele, as irmãs vislumbraram as Três Agulhas Negras, as enormes construções de Gólgota, perceberam os planos secretos de nosso coração e nos abraçaram cada uma de um lado. Sevla à esquerda e Melangra à direita.
Menos de meia hora era necessária para ir do ancoradouro até a Agulha principal, uma viagem curta, feita lentamente para que elas vissem a extensão do sonho do qual passaram a fazer parte. Até o V8 desistir de funcionar.
Mais de vinte minutos se passaram enquanto o Xamã fazia suas preces para que o V8 voltasse a funcionar. Riscou o chão, aspergiu sangue e saliva, mas nada fazia o veículo dar o menor sinal de movimento. Sua irritação era evidente, ajoelhou e iniciou mais uma série de preces, foi quando senti que já poderíamos ter andado e feito o que restava do caminho.
Ele não era velho, talvez tivesse próximo dos cinqüenta anos, mas como todos os Xamãs, sua aparência escondia os prodígios de que era capaz com seu corpo modificado por uma magia estranha. Alguns diziam que eles na verdade eram não eram humanos, principalmente pela forma como lidavam com suas tão cobiçadas máquinas, mas eu sabia que eles respiravam e sangravam exatamente como qualquer outro mortal.
A letargia tomou meu organismo, e apenas então percebi que algo de muito estranho estava acontecendo. Belial adormecia, sua voz não existia e nem sua presença. Fui tomado, pela primeira vez, por pânico e a verdadeira sensação de solidão.
– O veículo não vai se mover?
– Aguarde senhor, ele está tentando, mas uma força estranha está fazendo com que não consiga. – Não fosse a seriedade e o suor vertido pelo xamã, eu acharia que era piada ele referir-se à máquina como a um ser vivo.
– Vamos andando garotas. – Dito isso minha força desvaneceu, esfreguei os olhos e vi que a distância, antes ínfima, se alongara por milhares de quilômetros. O mundo inteiro estava se transformando, e até mesmo as mulheres tinham sido tomadas por aquilo.
No chão, Sevla já estava deitada e fazia uma cara de cansaço tão contagiante que era convite para deitar também, ignorar aquela terra vermelha e procurar um canto para descansar. Encostar as costas e esperar que o xamã restaurasse o comando sobre sua máquina não seria um grande sacrifício.
Melangra resistia, já estava arqueada com as mãos em seus joelhos como se algo a empurrasse para baixo, forçando cada músculo de seu corpo a lutar contra a vontade de se jogar no chão.
– Faz sempre esse calor terrível por aqui? – As palavras dela foram ditas de modo mole e quase sem fôlego. Mas do que ela falava? Gólgota nunca tivera calor como ambiente!
Será que era esse o motivo, uma sensação de calor que eu não sentia desde minha vida humana? Não, elas eram humanas e não existia um motivo para que qualquer sensação dessas causasse tanto estrago. Pensar se tornara cansativo e o Xamã que estava há centenas de metros parecia já dormir.
Cansaço, sono, moleza, letargia, conforto, tudo estava bem. Por quais motivos eu iria querer sair daquele lugar? Não existiam motivos para que eu me esforçasse em vida, ainda mais naquele mundo escabroso.
A mão de Melangra vinha em minha direção, pareceu que demoraria uma centena de anos para chegar ao meu rosto, mas ainda assim mover-se para evitar o tapa não era possível, eu estava caindo, o universo escolhera que tudo aconteceria lentamente.
Até que ela caiu na letargia e o tapa jamais chegou. Era a sensação da morte? Como minha vida não começou a passar na frente de meus olhos eu mesmo escolhi relembrá-la, a começar pela primeira memória que eu guardava: o assassinato de minha mãe e minhas duas irmãs.
Eu ainda era apenas um garoto, meu pai um psicopata. Eu já corria dele por horas me escondendo e ainda assim ele me encontrava, hoje sei que foi Belial quem me protegeu quando fui encurralado em uma rua sem saída e vi a morte se aproximando lentamente, da mesma forma como estava testemunhando ao lado daquele V8.
Seu último passo foi dado há alguns metros de mim, ele me vira ali indefeso e imóvel, pois a exaustão era o preço de ter abusado tanto de um corpo infantil. Pensei naquele momento em rezar para algum deus, mas não tinha crença nem tempo para isso.
De uma garagem de uma velha construção saiu um V8 fumegante, diferente do vermelho que o xamã pilotava, preto com pintura de chamas em sua lataria. Arrebentou a madeira da garagem e acertou em cheio meu pai jogando-o contra a parede, deixando-o quase morto. Dois garotos de aparência angelical saíram do carro e sua simples presença já me dera conforto e confiança, me aproximei deles para agradecer:
– Que legal, vamos passar por cima dele agora? – um deles disse perguntou.
Aceitei o convite, entrei no carro e me deliciei com o som dos pneus passando por cima da cabeça daquele maldito, uma, duas, três vezes seguidas. Até que o que restara ali não tivesse sequer a sombra de um dia ter sido uma pessoa. Fui deixado na esquina de casa, naquela época existia polícia e ela já estava verificando a atrocidade que ocorrera em meu lar.
Sem evidências que me protegessem fui preso pelo assassinato de minha família e levado para uma instituição de correção onde agonizei por longos seis meses, uma queda do qual eu ainda não tinha sentido o total impacto.
Meio às disputas de poder dos maiores eu me tornara uma vítima, até que a morte me seguiu até aquele lugar maldito, como uma benção. Acordei no meio de uma noite e lá estavam os dois gêmeos do V8 flamejante, colocando fogo em cada um dos que me atormentaram ao longo daqueles seis meses de dor e terror, um deles viu que eu acordara e disse:
– Fuja, nós cobrimos você!
Eu não sabia naquela época, mas aqueles irmãos eram Belial, uma força tão antiga que remontava às épocas do paraíso. E o V8, sua paixão desde as primeiras influências nesse mundo, era a carruagem que ele escolhera para a nova fase de sua existência, para a melhor execução de seus planos e conexão com seu futuro recipiente.
Voltei daquela sessão nostálgica e percebi que ainda estava entre os segundos de minha queda no chão devido àquela moleza, mas ao menos a velocidade do pensamento tinha se recuperado. Belial não estava em “casa”, ou se estava, permanecera dormindo. Ordenei a meus pulmões que recuperassem o fôlego e eles atenderam depois de anos sem comunicação de minhas ordens para meus próprios órgãos.
Foi delicioso o ar respirado entrar como uma navalha gelada rasgando as narinas e as gargantas, meus olhos vidraram por um momento e a letargia sumiu. Era bom demais retomar o controle dos atos e do pensamento.
As garotas estavam no chão em um transe orgasmático balbuciando palavras em uma velocidade mínima e quase sem força, a letargia as dominava e também ao Xamã. O mundo deixara de ser aquela imensidão quilométrica para cada centímetro, em Gólgota, ordenei ao mundo ao meu redor que revelasse a fonte da força.
Ele estava lá, conseguira derrubar em seus sussurros cada um de nós ao torpor, mas não aos espíritos da terra, não aos que viviam em cada pedra e grão de terra, os verdadeiros servos de Belial. Belphegor, o Gregoraquiniano da Preguiça, um dos Sete Sacais, deitado sobre o capô do V8 com suas pernas cruzadas:
– Elas sempre foram preguiçosas, não queriam trabalhar para ganhar o sustento. Preferiam abrir as pernas. Você se tornou preguiçoso depois de Belial, não dirigiu mais sua vida e nem se preocupou com o comportamento de seu corpo – Sua língua estalava no ar como um chicote cadenciado.
– E meu irmãozinho, Belial? Oras, foi tão preguiçoso que recusou-se a andar pelo mundo, permanecendo em seu corpo fraco e patético.
Havia verdade nas palavras de Belphegor, todas as escolhas citadas foram feitas em prol do menor esforço. Mas qual era a medida do que era preguiça, o que definia que o esforço não era o suficiente para a causa o qual ele era empregado?
Como todos outros valores que reinaram na sociedade, era puramente arbitrário e referia-se aos que cercassem um indivíduo. Aquele maldito não era ninguém com a autoridade de impor o que era ou não preguiça apenas segundo sua ótica. Olhei para o Xamã ainda em uma pose de oração.
– Esse não usa as próprias pernas para andar, prefere fazer negócios com espíritos de uma máquina.
– Você é um babaca pior do que Belial descreveu – ri para provocá-lo – com esse conceito tão volátil posso dizer que você é preguiçoso por ter nos paralisado para evitar um combate.
– Mas eu assumo minha preguiça… quando me convém. E agora que estamos apenas nós dois aqui vou ensiná-lo como se dirigir a um ser superior – levantou-se do capô e apontou um dedo em minha direção enquanto sua língua continuava a estalar.
-Entendo, sou apenas um “receptáculo” não é mesmo? – eu sabia onde ele queria chegar.
– Não se apresse, não tente dizer minhas palavras – demonstrou leve irritação – você é um receptáculo sim, nada mais que isso, pois teu corpo foi feito do barro e…
– O seu foi feito do fogo, assim como o dos anjos foi feito da luz, não é mesmo?
– Pare de me provocar, mortal, você está apenas fazendo com que eu torne sua morte cada vez…
– Mais lenta, dolorosa, interminável e excruciante? – a cada vez que o interrompia a língua diminuía a cadência de seus estalos
– Acha que só porque viveu como um imortal até hoje…
– Não irei morrer em suas mãos enrugadas, preguiçosas e banais?
– Como quiser, vou acabar com você agora! – a língua parou de estalar.
Eu precisava apenas daqueles dois segundos e quando os consegui, com uma dentada arranquei carne, pele, veias e músculos de meu pulso. Era hora de Belial acordar e lidar com seu irmão. Mas não deu certo.
– Meu irmãozinho vai continuar a dormir. – o espaço entre nós foi reduzido através de uma distorção dimensional, Belphegor não andara, mas estava na minha frente no momento seguinte, com o braço a atravessar meu coração.
– Que droga – ri ao falhar daquela forma miserável – você pensou em tudo não foi?
– Pensar? De forma alguma, acabar com um humano como você não exige pensamentos, planos nem tramas, é algo tão simples que se torna inevitável. – ele recolheu o braço e procurou por um coração que não estava ali.
– Sentiu falta de algo?
Ele fechou os olhos e para expandir sua percepção demoníaca quando notou uma distorção dimensional atrás dele, percebeu o que eu quisera fazer aquele tempo todo.
Seus poderes para distorcer o espaço e o tempo, causando aquela letargia e finalmente a imobilidade eram fruto dos estalos feito pela sua língua em formato de falo. Ao fazer com que ela parasse de estalar, a possibilidade de propagar meu pensamento por Gólgota se apresentou.
Embora Belial tivesse sido o arquiteto da cidade, era meu sangue que corria em cada construção e cada célula de meu corpo estava intrinsecamente conectada com tudo, até mesmo com a morada dos afilhados de Belial. Contatá-los naqueles dois segundos não requisitou quase nada de força.
Atrás de Belphegor estavam vários Confrades, mais da metade dos Mascarados, todos movidos automaticamente pelo bastardo que ele fizera no passado e deixara viver, um ser com as mesmas capacidades e poderes dele, mas tutorado pelo irmão que ele fizera dormir.
– Você não deveria estar aqui, bastardo. – falou de olhos fechados, irritado com a intrusão.
– Imagine, meu pai, que eu o deixaria esperando. Sei o quanto sua preguiça é lendária e como cada movimento é feito tão raramente. – Um dos mascarados disse aquilo com uma voz tão grossa e forte que parecia o barulho de rochas explodindo.
Belphegor percebeu que aquele fora o último erro de sua existência. Tentou deslocar o espaço ao seu redor para escapar, mas ao olhar para baixo viu que a terra se tornara sólida como âmbar, na forma de um círculo mágico que não estava em livro algum, pois todos foram cuidadosamente destruídos no momento de ascensão.
– Onde você arrumou isso? Eu destruí pessoalmente todos os livros que…
– Continham esse círculo e todas outras informações que poderiam facilitar a destruição e controle de cada um dos sete, não é mesmo? Eu te apresento, meu pai, um computador portátil – retirou de seu bolso e mostrou um aparelho de visor luminoso onde estava o círculo descrito, digitalizado de um dos raros livros que o possuíam integralmente.
– Tecnologia, eu destruí tudo…
– Que você conseguiu lembrar não é mesmo? Mas somos apenas humanos e bastardos, jamais pensaríamos em juntar trinta desses para montar um que funcionasse não é mesmo? E ainda, nunca teríamos a brilhante idéia de vasculhar os restos de uma velha biblioteca, encontrar CDs, Disquetes e outras formas de armazenar informação que pudessem conter o que foi completamente digitalizado no começo do século… não é mesmo?
Belial acordou, senti minhas forças de volta quando ele regenerou rapidamente o ferimento de meu corpo, antes que eu encontrasse a morte final, em seguida, se afastou daquele círculo.
– Olá irmão, vejo que foi enganado por um “simples homem”. Talvez não tenha passado pela sua cabeça, mas achou realmente que eu me uniria completamente com um idiota incapaz de solucionar um pequeno problema como você?
– Belial, o que você…
– Cale-se, meu “irmão”. Você cometeu o erro de me atacar em Gólgota, a minha cidade. O final ideal para sua existência será poético, bíblico e visceral, sem qualquer vestígio de Preguiça.
– Sirvam-se, meus afilhados! – meu corpo abriu os braços sob o controle de Belial que proferira com prazer as últimas palavras para seu irmão.
– Agradecemos, padrinho. – Sussurraram em uníssono.
O Bastardo retirou sua máscara, mostrou seu rosto que até então era desconhecido pelo seu próprio pai, talvez a segunda ou a terceira arcada de dentes de tubarão tenha feito ele entender o que aconteceria.
Sem se importar, tomamos Sevla e Melangra nos braços, o Xamã enfim teve suas preces atendidas e o V8 voltou a funcionar, abandonamos a cena de fratricídio e canibalismo aproveitando o que restara da viagem.
Belphegor não mais existia, o equilíbrio dos Sete fora balançado e um filho bastardo teve acesso a toda sua herança sob o patrocínio de seu tio, Belial. A poesia proferida foi dada pelos gritos do Gregoraquiniano sendo mutilado e consumido pela própria prole.
Longe, com o vento no rosto conhecendo as paisagens de Gólgota, Melangra e Sevla compreendiam a extensão de nossos planos vendo as Três Agulhas se aproximando, sua nova casa, seu novo lar. Elas deixavam os bastidores para se tornarem as estrelas principais de nosso sonho.
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