Cutelo de prata e a questão de Dandara

(luxúria)

Das quatorze placas decoradas que vi nos últimos quilômetros não entendi nenhuma.

Não estavam escritas em um alfabeto que eu conheça, o que não é estranho já que conheço apenas o alfabeto comum do meio no qual fui criado, entre uma “parede babilônica verborrágica” que exaltava a individualidade da alma, e uma “falta complexa de autoamor” para quem tudo era sempre belo.

As placas com tantos símbolos estranhos eram leiloadas no centro da cidade velha, logo depois do rio. Tê-las em suas propriedades representava alguma coisa que eu não pudera captar ainda pela distância esquizofrênica que mantive dessa sociedade.

Meu pai era a “parede babilônica verborrágica”, dotado de uma pan-cultura pós-erudita que mesclava conhecimentos almejados pelos herboristas divinos e genéticos de esquina, pelos xamãs dos V8 e os confrades das máscaras. Ganhou bastante dinheiro enquanto manteve-se como um ídolo, impávido e inalcançável. Perdeu tudo quando tentou se humanizar.

Veja que, mesmo meu pai sendo um ás da cultura, jamais me proporcionou alguma erudição, dizia constantemente que não tinha filho, pois qualquer filho que fosse por ele parido seria um ideal, algo oriundo do reino superior das essências inefáveis. Sempre me achou meio lerdinho pra me proporcionar algum benefício.

A esse ponto já podem imaginar que a “falta complexa de auto-amor” foi minha mãe, uma suicida obscura que escolheu seu momento exato para deixar esse mundo. Levava sempre uma bolsa cheia de badulaques, presentes dados pelas suas tias, amigas, irmãs e pessoas que em falsidade sempre sorriam quando perguntavam como iam as coisas.

Nunca foram bem, e elas sabiam, mas não queriam se enfiar naquele meio. Mamãe trocou alguns dos badulaques em uma pista de velocidade, dei depois falta pela havaiana à corda que bamboleava uma saia de folhas, e escolheu um abençoado V8 verde.

Disse que queria sentir o aroma de gasolina e o da borracha queimada. Duvido que tenha sentido algo quando se chocou com a parede das lamentações que barrava o rio. Duzentos e cinquenta quilômetros por hora não dão luxo nem permissão dos sentidos.

Não foi esse o motivo da humanização de minha figura paternal. Ele conseguiu esquecer rapidamente a dor social entre um baseado de melado budista e o rebolar assíncrono de uma gueixa pré-paga. Uma branquinha que conseguiu fazer o pé de meia com o velho. Se bem me lembro, seu nome era Holda. Ou Helga, na verdade não importa.

Sua humanização aconteceu quando ele deixou o patamar iconoclasta para usufruir do fruto acumulado de seu burgo. Nessa época, conheci Dandara, uma negra de traços finos que estudava para se tornar uma gueixa pós-paga. Aquele tipo que proporciona garantias ilimitadas para quem pode arcar.

Perdi alguns quilos de juventude em seus quadris. Para ela, tudo era apenas treinamento para chegar à milhagem necessária para o próximo grau de sua estranha pirâmide social. A cada gozo, eu só me preocupava em como fazer para tirá-la de cima de mim. Nunca entendi essa necessidade por prazeres intermináveis com intuito de superar o tempo, a necessidade por algo que sublimasse o puro prazer do momento.

Soube da morte de meu pai enquanto cortava carne para tentar comprar uma jade para Dandara. Deram-me a notícia junto a uma carta de débitos que eu herdara. Débitos que foram feitos na mesa de uma roda de Roleta-Russa legalizada, a bordo de um Zeppelin oriental. Numa rodada do prazer para poucos, o velho apostou mais do que tinha. Dívida herdada é uma merda e eles enfiam ela dentro de você se não for paga.

Logo após receber esse presente, levantei o cutelo com poesia, imaginei que o pescoço do frango era o pescoço de meu pai. O frango não fez barulho nenhum depois do golpe. Quem quer que tenha comido aquele sacrifício libado a deuses não nomeados provavelmente ganhou um câncer na bexiga, o mesmo que meu velho, o mijão, escondera até não poder mais.

Dandara gostou da jade, me introduziu na noite em que a presenteei a um show especial que criara. Nomeou aquela performance de “Solidificação de Eroto-Prana”, ela era escolada nas tradições que envolviam palavras como Prana, Dharma, Qabbalah e Abrahadabra.

Acho que ampliou esse interesse quando se deixou dominar pela única vez e eu disse a ela que eu era um Deus de Prata, que a inoculava com a semente de uma raça superiora. Visitamos uma única vez a última morada de papai, ela gostou dos livros dele e consegui trocá-los por mais algum tempo de prazer sem culpa após a gota de uma droga chamada de “melzinho de moça”.

Com o tempo paguei a dívida, tive então de que me mudar da torre da Asa 3-Oeste, o burgo abandonado de papai. O dinheiro foi fruto da eliminação de todas as memórias dele e de mamãe, naquele dia escrevi em um pedaço de couro de porco que eu nascera divinamente, fruto da queima da gasolina que irritara algum deus. Ri, fechei a porta, entreguei a chave e voltei para o corte de carne. Demorei algum tempo pra entender a graça daquela frase.

Foi então que comecei a ver essas placas, me mudara para o subúrbio da Asa 3-Oeste onde fiquei mais perto de Dandara e do corte das carnes. Primeiro elas eram bem feitas, ouro ou bronze com metal líquido em movimento. Raras e fantásticas. Por algum motivo de economia resolveram usar o plástico e o silicone para as placas seguintes, eram mais bonitas nas primeiras semanas. Desgastadas, foram cultuadas como pós-modernidade erosiva.

Dandara me deu adeus ali no matadouro, algum tempo depois de minha barba já ter se consolidado, deixou algum troco na mão do dono e me trancou com ela por dois dias. No fim das contas eu não sabia se o sangue espalhado era meu, dela ou de alguma carne mal cortada.

Passeamos por cada curva que ela tinha, conheci enfim todo seu repertório e repetimos algumas vezes. Ela me disse que nenhum outro homem conheceria todos aqueles movimentos, deu um único beijo molhado em minha boca e saiu toda banhada em sangue sacrifical. Provavelmente algo iniciatório.

O homem não se importou com nada, mandou outro lote de carne e eu continuei a ampliar a gama de cortes que conhecia. Uma semana depois eu decidi não precisava mais cortar carne e escolhi continuar por mais uma semana, que se transformou em mês e em seguida em ano, o momento acontecia.

Quando o homem foi vítima de um ataque convulsivo brincando com facas elétricas o novo dono mandou todo mundo embora, eu me despedi com uma boa joelhada em seu saco, homenagem ao falecido, tomei-lhe dois dentes podres e segui meu caminho.

Vi a primeira placa após pular do carona que ia seguir para outro lado, perseguia um cometa e me confessou que ele o deixaria milionário, tinha uma picareta para escavá-lo e ia encontrar alguma coisa que não soube me explicar. Vira tudo em um sonho, e contra o sonho, lutar seria estupidez.

Eu disse a vocês quatorze placas, menti. Na verdade foram bem mais, no entanto estavam amassadas ou em estado de descuido total. As quatorze mencionadas eram as mais bonitas vistas pelo caminho e a última delas me lembrou de alguma forma bizarra os dentes de Dandara, retangulares e perfeitamente brancos.

Não entendi o que estava escrito, mas conhecia a região e sabia que ali era propriedade de gente importante, daí terem cacife para manter uma placa daquelas sempre branca e brilhante. Senti saudades das curvas de Dandara.

Atravessei o rio na terceira noite de caminhada, passei pelo leilão das placas e vi todas as seções que diferenciavam os ricos dos importantes, os pobres dos famintos. Cada seção tinha direito a apenas uma placa por dia, não era possível negociar nem reclamar. Claro que as placas mais caras eram as mais bonitas, mas naquele emaranhado de perfumes doces e podres todos tinham chance de ter a sua. Todos tinham chance de ter uma identidade.

Dois homens na porta do bar ao lado do leilão conversavam sobre os alfabetos, fingi procurar algo no chão de terra ao lado e ouvi alguma coisa sobre uma cabeça de boi ser invertida ou torcida para entrar em conformidade com o significado.

Não me animei, pois logo vi que não falavam de um boi propriamente dito, e que virar a cabeça dele não era um método diferente para sacrificar e fornecer carne. Dei de ombros e entrei no bar.

A primeira pessoa que vi após passar pela porta foi um Leão de Chácara, do alto de seus mais de dois metros e meio de altura ele não fazia revista. Era apenas um snif, snif em cada um que parava na sua frente. Ninguém ia tentar entrar com uma arma ali vendo as garras geneticamente estimuladas do gigante, mas ele cumpria seu papel.

Entrei na pequena fila de três pessoas e aguardei minha vez, observei um pouco aqueles três à minha frente e vi que estavam em melhores condições financeiras que eu, o que não era raro também. Um deles olhou para trás e fez aquele olhar de quem tomou uma facada no estômago e está prestes a vomitar, afinal eu era plebe para ele e não deveria estar no mesmo recinto.

Encarando um pouco o Leão, para não sucumbir a meu impulso de puxar qualquer coisa pontuda da mochila e fazer com que o metido sentisse verdadeiramente a dor que fingira, notei o tamanho das garras dele, não consegui deixar de rir quando imaginei como aquele cara fazia para limpar a bunda.

Na minha vez ele deu a primeira snifada e na segunda e eu achei que já poderia passar, fui barrado. Ele deu uma terceira snifada e lambeu os beiços perguntando se eu podia indicar algum corte especial para ele. Trabalhar com sangue todos os dias não é algo que sai com uma lavada de mãos, prometi que lhe faria uma consultoria completa logo que ele fizesse sua pausa de turno. Entrei e ganhei um cartão cinza marmorizado, bem diferente do amarelo vômito que os outros ganhavam.

Após a corda de contenção fui recebido por duas meninas com aparentemente não mais de 13 anos, estimuladas geneticamente para aparentarem aquela idade. Elas eram a prata da casa, estar acompanhado delas servia para notificar que eu era alguém importante e tinha tratamento preferencial.

Foi irônico ter sido tratado como alguém importante apenas por conhecer certos cortes e técnicas. O riquinho, que há pouco me medira como um filete de bosta em seu caminho, não pode acreditar na cena, ignorei e fomos logo para um quarto onde dispensei as garotas, disse que pegar crianças, naturais ou não, não fazia meu estilo. Recebi Dandara logo a seguir.

Veja bem, não era exatamente a minha Dandara, não tinha dentes perfeitos e precisos como os dela, não era negra, mas de um tom mulato desbotado tentando se fixar no jambo. No entanto o olhar profissional era o mesmo. A paixão com os quadris era a mesma. Chamei-a pelo resto da noite de Dan.

Seu nome pelo que lembro era Mônica, mas não ligou de ser chamada por outro nome enquanto desempenhava sua função. Ela me confessou, de quatro, estava acostumada ser chamada de nomes piores. Percebi que era um convite.

Fui à forra com a mulata, no começo do movimento ela tentou me surpreender com alguns rebolados que conhecia, sem sucesso. Em seguida guiei-a com alguns dos rebolados que foram elevados à perfeição com Dandara. Me senti o verdadeiro Deus de Prata quando ela orgasmou consecutivamente e quase caiu, de pernas bambas e sem conseguir se levantar por longos minutos.

Após deixá-la de lado, para mergulhar em um drinque do qual pulavam faíscas, rapidamente a parede de trás do quarto se abriu, revelando ser um camarote para o resto do bar, com vista exclusiva para a pista de dança e visão privilegiada para o festim sado-burlesco que acontecia nesse segundo andar, logo à frente.

O segurança bateu na porta antes de entrar, Dan o recebeu e em seguida saiu deixando-nos a sós. A consultoria foi rápida, ele me pediu indicação e eu pedi uma cabra. Feito.

Ele me pediu um corte e eu dei a ele três. Feito.

Aquele cara comia muita carne, uma necessidade de quem tem um sistema genético como o dele para alimentar, deviam ser células de deuses ou algo dessa complexidade. Apaixonou-se pelo corte traseiro enviesado, feito com uma explosão de sangue após amarrar bem apertada a artéria da perna.

Após vê-lo saborear a carne ainda sangrando ,com a habilidade de um verdadeiro conhecedor, expliquei a seu funcionário sobre as veias e os nervos a se evitar, e desenhei rapidamente um mapa para guiá-lo.

Disse que o funcionário não cuidava de cortes, ele tinha a doença da tremedeira e não conseguia cortar um centímetro sem fazer zig zag. O segurança parou por alguns minutos pensando e me fez uma proposta, daquelas que você recusa apenas se quiser ser morto ou for idiota a ponto de não entendê-la.

Quase perdi o ar com o abraço de satisfação e agradecimento do Leão, ele disse que a noite era por conta dele e deixou o quarto. Escolhi as mulheres não mais pensando em Dandara. Dan conseguiu sufocar a saudade por tempo suficiente para que o Deus de Prata experimentasse o mais fino da casa.

Mei foi a primeira. Uma oriental de coxas enormes e muita habilidade em prolongar o prazer de um homem, sorria quase convulsivamente a cada orgasmo e logo me cansou pela falta de habilidade em rebolados

Angélica foi a segunda. Magra, olhos azuis e uma cabeleira longa, cheia de ondas e volumosa, ela chegou toda cheirosa lançando seu aroma pêssego pelo ar e me prometendo mais do que conseguiu cumprir. Após se assustar com meu conhecimento de sua anatomia e com a descoberta que fiz, de que ela adorava ser asfixiada, tentou fazer o tipo namoradinha. Tchau!

Tive uma terceira e na quarta recebi uma quinta junto, o comentário já tinha sido feito e cada uma delas queria ver se eu descobria os segredos delas. Me deliciei em ver que todas ficaram atônitas com a constatação que eu descobria, agradecia a Dandara pelos segredos de cada rebolado.

No fim das contas foram inúmeros prazeres, e um sem número de reboladas que eu já conhecia de traz para frente, a única informação válida foi o porquê daquelas placas serem tão importantes. Cada placa era como um espírito, um guardião, algo bem gênio da garrafa que protegia a casa em que fosse colocada da sorte de monstruosidades que os Gregoraquinianos, os reis do mundo, soltavam às vezes para passar o tempo.

Quem descobrira isso e como produzir essas placas ninguém contaria, do contrário os reis poderiam caçá-lo. Ou caçá-los, devia ter mais de uma pessoa que soubesse isso, mesmo que os leilões fossem particularidade da cidade, a forma encontrada para proteger a vida dos moradores.

Acordei na manhã seguinte revigorado e troquei número de telefone com as garotas, que talvez jogassem meu número fora e com o Leão, que eu ainda não sabia, mas viria a se tornar meu maior cliente, além de patrocinador.

Na rua, debaixo daquele cinza que eram os dias, sempre sem sol, foi que decidi dar uma andada pela cidade, ainda sentindo o cheiro de oportunidade no ar. Enfim escolhi uma vizinhança bacana, bati na porta da casa que gostei e que não tinha uma placa ainda. Soube de quem ela era e quanto teria de pagar, anotei tudo mentalmente e voltei ao caminho inicial.

Demorei mais quatro dias pra chegar à cidade de Dandara, durante esses dias revisei meus planos e recebi um telefonema do Leão, que acertou todos detalhes comigo e me deu o sinal positivo para prosseguir com o plano.

A cidade de Dandara era marcada por longos edifícios escarlate, ruas negras e uma limpeza asséptica nas ruas que me causava nojo. Não zanzei muito por ali e fui direto para a zona das gueixas pós-pagas, eu sabia que era para lá que ela se dirigira depois de formada.

Fui tomado como mendigo logo nos portões, o segurança deles logo veio ao meu encontro e me reconheceu, disse que tudo estava arranjado. O Leão, seu irmão de armas, como alegou, tinha feito boas recomendações. Passei dois cortes de boi para ele e ganhei em uma caixa de madeira muito bonita um cutelo de prata, feito dos restos de alguma placa cuja história para eles era um tabu. Tinha algumas inscrições que eu também não entendia e davam a ele um ar ritualístico, Dandara se apaixonaria.

Coloquei aquele afiado instrumento de arte na cintura e fui até a casa principal da zona, onde estavam as gueixas que se esforçavam tal qual Dandara, o irmão do Leão me indicou o caminho e disse não me acompanhar por saber que eu conseguiria tudo sozinho.

Tentaram me colocar pra fora da casa, o dono apareceu após eu dizer que era marido de Dandara e tentou me intimidar dizendo que ela agora pertencia a ele de papel passado. Contra essas leis eu não teria o que fazer e teria de engolir a seco.

Teria, não fosse a falha dele em esconder a marca de falsificação do documento, se papai me ensinara sem perceber alguma coisa que eu jamais julgara vir a ser útil em minha vida, fora a reconhecer uma falsificação grosseira. Devo ter sorrido como um psicopata, a lei estava a meu favor.

Cortei a mão do camarada com um só golpe, não foi um golpe bonito nem plástico, atingiu da maneira errada a artéria e ele se tornou um esguicho disperso de sangue. O segundo golpe na parte traseira da coxa, enquanto ele tentava correr, foi como um golpe contra um novilho. Arranquei um bife de ponta a ponta.

Bem, os golpes seguintes foram feitos com requinte de crueldade artística herdada do casamento grotesco de meus pais. Enquanto eu tentava deixar o resto da sala pintada da mesma cor, apenas firmava a individualidade de minha alma.

Um exército de seguranças apareceu pra me escalpelar vivo, eram os tipos de caras contra quem o cutelo não faria um arranhão, acho que foi a única hora onde eu quase me borrei. Tive um ímpeto de coragem e levantei o cutelo preparado para morrer.

Graças ao irmão do Leão, eu apenas sentei em uma mesa e após mais de vinte consultorias de cortes eles me indicaram que ela estava no quarto andar da casa, era mantida como escrava de chicotadas, perguntaram se eu queria ajuda e eu respondi que não, um verdadeiro homem resolvia sozinho esse tipo de assunto.

Antes de subir me contaram que o dono broxa da casa nunca tinha conseguido uma ereção pra saborear aqueles glúteos. Decidiu por fim que, se ele não podia, ninguém mais poderia. Com isso, alugava o couro de Dandara como alvo para os pervertidos que sentiam falta das surras que tomavam quando criança e só podiam devolvê-las a alguém pagando uma boa quantia. Patéticos.

Esses broxas eram mais numerosos que eu imaginava, imaginei que eram todos amigos do dono ao vê-los fazendo uma fila que dobrava o corredor, chegando perto da escada. Um a um bradavam seus chicotes com um orgasmo entalado na garganta pronto para desferir os açoites na bunda redonda de Dandara.

Só consegui fazer um bom serviço no último da fila. Os últimos realmente são os primeiros, lembrei, pois aquele foi o único que atingi com surpresa, todos os outros tentaram correr, alguns invadiram quartos sendo surrados por todo tipo de pervertido que ainda tinha verve.

Outros pularam pela janela em pura estupidez. Por fim restava a porta com uma enorme placa acima, nela, mais uma das muitas inscrições que eu não conseguia ler. Usei a maçaneta como todo homem civilizado usaria para entrar em um recinto e tive como primeira visão o magrinho branquelo.

Era um tipinho tosco, pancinha saliente em um corpo magrelo, usava um açoite cromado e já tinha desferido uma meia dúzia de golpes naqueles montes gêmeos. Dandara estava de quatro, amarrada, tinha um cinto de castidade que a protegia de violações, mas permitia as chibatas perfeitamente.

Ele se preparava para mais um golpe quando deve ter visto minha sombra e se virou, deu de cara comigo e recebeu o cutelo entre os olhos. Não calculei direito a força do golpe e ele sobreviveu.  Ainda estava vivo, com um açoite no meio da testa chorando e sangrando em desespero igual uma criancinha.

Os gemidinhos de dor dele me irritaram, uma bica no estômago fez ele se calar e ficar imóvel o suficiente para arrancar o cutelo de volta, desmaiou com a visão do sangue que vertia de sua cabeça. Cortei as amarras de Dandara e ela me olhou com aquelas duas pérolas negras que tinha como olhos com paixão pela primeira vez na vida.

Vi logo atrás uma câmera que filmava tudo ali, provavelmente era a única forma com a qual o dono broxa conseguia ter alguma ereção, uma voz saiu dela e percebi que era um dos seguranças, avisando que tudo seria apagado e eu não precisaria me preocupar, o próximo dono estava esperando para tomar posse daquele prédio. Clientes satisfeitos.

Dandara estava magra, pálida e abatida, mal comia e fazia muito tempo que não via a luz do sol. Eu a abracei, ri e disse que um pouco de carne resolvia aquilo rapidamente. Ela me deu um beijo na boca e disse que não me amava, mas que ficaria comigo pra conseguir aprender isso alguma hora.

Assim que chegamos à cidade velha o Leão já tinha resolvido tudo conforme combinado. Ele mesmo comprara nossa nova casa como um empréstimo que eu pagaria oportunamente. Assim que entramos, eu a coloquei na cama e resolvi que ia preparar um belo bife para ela.

Pouco antes que eu chegasse à porta ouvi meu nome sendo sussurrado, cheguei bem perto e ouvi que ela tinha fome, mas de outra coisa e que deixaria a carne pra depois… Ou durante, se eu preferisse.

Nos atracamos como duas criaturas no cio, o que era de costume, e a cada rebolada que executávamos em homenagem aos dias do passado, e aos presentes do futuro, eu me perguntava se amor era aquilo, ter a certeza de que apenas os rebolados dela poderiam saciar minha vontades em cada um de seus momentos.

Na semana seguinte aprendi a ler um pouco de algumas das placas, foi exigência de Dandara, pois logo teríamos a nossa. Na segunda semana eu já conseguia ler a maior parte do que estava escrito em algumas, mas ainda não inteiramente.

Enquanto Dandara recuperava sua plenitude, me usando como cobaia para novos rebolados que somente usaria comigo, segundo sua palavra, pude aos poucos perceber que minha influência havia se tornado massiva, os clientes mal davam descanso, vinham de todos os lugares, e em sua maioria, indicados pelo Leão, esse era o mal das células de deuses e demônios que eram implantadas nesses caras, uma fome que apenas a carne e o preciso corte podiam saciar.

Por fim chegou o tão esperado dia no qual eu faria parte do leilão, na ala mais importante onde as placas mais desejadas eram dueladas quase como um pedaço de carne em uma briga de cães famintos portando foices. Tudo estava arranjado para que fosse eu o vencedor, cortesia de meu mais fiel cliente.

Entre os gritos e disputas dos pobres e famintos, e a empertigues do leilão rico, minha ansiedade foi acalentada pelo sentimento bizarro que foi ler, pela primeira vez em minha vida, uma placa do começo ao fim. Ela era bela, era minha, feita de ouro e bronze polido com detalhes em couro-bravo.

Fixada na porta de casa, nela eu pude entender a felicidade e a importância de quem as tinha de longa data, lá eu pude pela primeira vez entender essa felicidade ao ler a cada dia que iniciava um dia de trabalho que nela estava escrito: Açougue Cutelo de Prata!

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