Lady Hiroshima, a Gênese

(ira)

Sete milhas ficaram para trás em um rastro de poeira e marcas de pneu na terra. Dentro do V8 amarelo com faixas pretas verticais acelerando em direção à tempestade, três pessoas viajavam concentradas em seus assuntos, em silêncio.

A motorista, de cabelo loiro e olhos laranja, baixa e magrinha, era Mustang, uma xamã dos V8, capaz de conjurar espíritos e fazer com que aquelas máquinas sagradas se movessem sob seu controle. Em uma era onde o conhecimento de motores era raro e os combustíveis ineficientes, apenas os xamãs conseguiam fazer com que tais veículos se movessem.

Ao seu lado, Sabazius Mão de Bronze. Um homem com pouco mais de 1,80m de altura, careca, pele jambo e olhos azuis. Mal vestido, não aparentava a importância que tinha, segundo na cadeia de comando de Motora, a cidade de onde partiam. Sua mão direita, coberta de símbolos mágicos, parecia estar com uma luva metálica o tempo todo, da cor escura que lhe apelidava.

Sentada no banco de trás, uma mulher oriental. De pensamentos agitados sobre o irmão desaparecido tantas décadas atrás, refletia sobre a pista que surgira, mas suas esperanças não eram boas já que a notícia de forma alguma era animadora.

Seu nome, Lady Hiroshima, uma mulher não-nascida. Não como homens e mulheres nascem há tantos milênios. Quando o poder do átomo foi liberado pelo homem em 1945, a barreira entre dimensões foi abalada. Menos de um mês depois foi a vez de utilizar tal poder para destruir vidas, vencer guerras e dar aos homens o prazer de brincar de engenheiros da realidade. Um “Pequeno Rapaz” explodiu revelando a verdadeira face daquilo que podia acabar de vez com o mundo.

No ponto zero dessa explosão a realidade fora quebrada por uma fração de segundo. Tamanho fluxo de energia fez com que uma criança surgisse, como se a própria radiação liberada por aquele artefato bélico tomasse forma e consciência na geração espontânea de vida. Imune ao inverno nuclear, ela foi a única testemunha da dor sentida pelas vidas ceifadas naquele dia, uma única vida surgida da morte de milhares.

A mesma cerimônia macabra se repetiu após alguns dias, não muito distante. Dela nasceu o garoto que Lady Hiroshima tomara por irmão, Nagasaki. Ambos vieram ao mundo em corpos de criança com poucos meses de vida e, embora não pudessem falar, seus pensamentos eram o de almas antigas mas sem memórias.

 Encontradas pelo doutor Tannhauser, as crianças foram levadas para as instalações secretas de uma dissidência do Projeto Manhattan, onde sofreram toda sorte de exames possíveis. Não estavam preocupados com a geração espontânea de vida por desconhecerem esse fato, queriam descobrir como elas conseguiram sobreviver à explosão, como não dependiam de alimentação e como a pele deles podia ser tão resistente e ainda assim flexível.

Com o tempo passaram a pesquisar por qual motivo elas emitiam continuamente radiação. Graças aos métodos cruéis, sofreram por muitos anos, até que alcançassem a auto-suficiência através do desenvolvimento de seus corpos, marcados pelas retiradas de amostras.

Quinze anos se passaram quando um dos laboratórios explodiu pelo despertar de poderes latentes da menina. Escaparam meio a aquela confusão e se esconderam por alguns anos no qual viveram em paz. Quando souberam que estavam sendo caçados pelos soldados do Projeto Manhattan, passaram a se mudar. Por quase vinte anos eles não descansaram.

Décadas após, quando o mundo entrou em colapso graças à dissipação total da barreira que separava a Terra e o Inferno, os dois irmãos se juntaram novamente aos homens para lhes dar esperança e protegê-los dos desmandes dos Sete Senhores do Inferno. Seus corpos não envelheciam desde os vinte anos, mas eram mais inteligentes que os outros humanos. Essa inteligência foi a peça fundamental para convencer aquelas pessoas a reagirem e a não deixarem-se tomar pelo desespero. Estava fundada Motora, a cidade que permitiu a muitos homens sobreviver naqueles tempos inóspitos.

Nagasaki, nos anos que precederam seu desaparecimento, passara a ter pesadelos perturbadores. Dizia que sua alma era formada pela amálgama dos milhões que morreram no seu nascimento e que, ao contrário daquelas que formavam sua irmã, jamais ficaram em paz. Atormentado, dia após dia apenas fazia com que a preocupação da irmã aumentasse, até que idéias de suicido começaram a ser a proferidas por ele como única solução.

Para infelicidade do homem, tentativa após tentativa de por fim à vida fracassara. Nada era capaz de ameaçar sua existência. Desesperado, tomou de sua irmã a Espada Tsar, encontrada em 1961 no ponto zero da maior explosão nuclear já testemunhada e fez uma nova tentativa, percebendo enfim que algo era capaz de feri-lo.

Hiiroshima enfureceu-se com o gesto do irmão, pela primeira vez se desentenderam e brigaram. Na manhã seguinte Nagasaki desapareceu sem deixar rastros ou indicações, apenas uma nota pedindo desculpas e falando sobre sua busca de um lugar naquele mundo. Procuraria uma forma de apaziguar aquelas almas.

Os cidadãos de Motora ofereceram seus sentimentos e apoio a Lady Hiroshima e, durante anos, ela procurou pelo paradeiro do irmão sem sucesso. Concluiu que se ele não quisesse não seria encontrado. Focou-se então nos assuntos de Motora, agradeceu aos esforços dos que a apoiaram e cancelou a força tarefa.

Apenas uma pessoa persistiu na busca, Chernobyl, um garoto também nascido de forma estranha após um desastre atômico, adotado pelos irmãos. Incansável, ficou anos sem dar notícias a Motora, mas as eventualidades do destino foram vencidas pelo seu espírito quando ele encontrou um homem chamado Belial. Retornou imediatamente para Motora.

O dia amanhecera há pouco, o céu que não mais conseguia mostrar o sol apenas clareara seu tom de cinza, fazendo com que o brilho das estrelas que estranhamente conseguia transpassar aquela Mortalha, sumisse. Cansado, Chernobyl fez questão de entregar pessoalmente as notícias que trazia sobre Nagasaki. Embora não fossem boas, ele cumprira sua tarefa.

Foi em Gólgota, uma cidade distante, que ele encontrou Belial e, graças a ele, foi capaz de trazer as informações sobre o possível paradeiro de Nagasaki e uma que realmente perturbou Hiroshima: O Doutor Tannhauser estava vivo.

Se alguém podia causar medo àquela deusa entre os homens, era o velho doutor. Resquício das péssimas memórias dos dias do Projeto Manhattan, a esse temor se adicionava a dúvida de como ele estava vivo depois de tantos anos. A melhor notícia era a companhia que o garoto trouxera e aguardava o interrogatório de Lady Hiroshima.

Chernobyl saíra na frente rumo à instalação onde era mantido o prisioneiro que possuía informações sobre Nagasaki. Após resolver os assuntos de maior importância em Motora, Hiroshima pediu a Mustang que a levasse até o local.

Sabazius decidiu acompanhá-la, seria útil em um interrogatório. E por fim estava Hiroshima, com seus olhos orientais de cor violeta, cabelo de um preto intenso preso em um coque que fazia contraste com sua pele alva, tentando controlar suas emoções em seus pouco mais de 1,60m.

Quebrou o silêncio dentro do V8 e pediu a Mustang:

– Você pode colocar alguma música? Não quero chegar lá tensa.

Mustang acenou com a cabeça e deu um sorriso para Sabazius que apoiou a nuca nos braços e fechou os olhos quando os alto-falantes do carro começaram a tocar RidersontheStorm”.

A instalação ficava há algumas milhas da cidade, no passado servira como Shopping Center e em seu subterrâneo estava o prisioneiro, um demônio de imenso poder comparável até mesmo ao dos grandes Senhores do Inferno. Hiroshima avaliava o esforço que Chernobyl fizera para trazê-lo até ali vivo, com apenas um braço faltando. Sentada numa cadeira à frente daquela criatura de olhos amarelos, ela perguntou o que ele sabia sobre seu irmão.

Uma risada foi a resposta do demônio, desafiava Hiroshima por não ver nela, uma garota de aparência exótica, qualquer ameaça. Ainda julgava que Chernobyl tivera sorte em capturá-lo.

– Não direi nada, apenas me deixe livre… e eu prometo que irei matá-los rapidamente, sem dor.

Hiroshima deixou claro que seria ela quem resolveria aquele assunto. Levantou-se da cadeira e chegou bem perto dele, ainda com a mão na espada Tsar que permanecia embainhada em sua cintura. Cara a cara, disse apenas uma palavra:

– Dor?

O Demônio mantinha o ar de deboche planejando incinerá-la com sua labareda infernal. Após isso, cortaria as cordas que o prendiam com a espada que ela carregava. Mas não foi o que aconteceu.

Um corte vertical rápido como um relâmpago, cortando metade do pé esquerdo até a altura do ombro da criatura foi feito por Hiroshima, sem que o demônio sequer conseguisse acompanhar o golpe. Ele estava com um enorme ferimento, mas livre, e poderia escapar.

Nos áditos do inferno, em fogo e enxofre aquela criatura nascera e fora criada, conhecia a dor, mas nunca sentira uma de tamanha intensidade. A lâmina veloz deixou em seu caminho puro sofrimento, como se ácido tivesse sido espalhado por cada milímetro do corte fazendo-o se arrepender do erro no mesmo momento.

– Você já está morto. Aqui é o seu cemitério. Sua única escolha é continuar a sofrer dores cada vez mais fortes até morrer, ou me dizer o que desejo, e ter, como você mesmo disse, uma morte rápida e sem dor.

Apenas as palavras de Hiroshima cessaram aquela sensação insuportável, causando alívio a ele após seu corpo ter retesado e no espasmo, os dentes se chocaram com força, trincando a maioria e quebrando alguns.

– Direi tudo o que você desejar, mas não faça com que eu sinta isso novamente.

– Seu nome, o que você sabe sobre meu irmão, Nagasaki, e sobre Tannhauser.

Durante a próxima hora, mesmo solto e podendo arriscar uma fuga, Amon, o demônio, relatou a Hiroshima estar sob ordem de Azazel, um dos Sete grandes demônios que controlavam o mundo, chamados também de Gregoraquinianos. E sob a ordem deste mesmo senhor, Tannhauser tivera sua vida prolongada com a promessa de uma arma capaz de destruir mundos.

Nagasaki estava com o doutor e a perturbação que o assolara por tantos anos era fruto do poder do homem da ciência sob a égide do Senhor da Ira. Unindo magia e tecnologia nuclear, ele conseguira bombardear o organismo de Nagasaki criando o desequilíbrio necessário para que ele se afastasse de sua irmã e fosse capturado por ele.

A última informação de Amon foi que seu irmão não era mais o mesmo, se transformara na tutela de Tannhauser e ela devia se preparar para vê-lo novamente. Cumprindo sua palavra, Lady Hiroshima acabou com o sofrimento do demônio não deixando que restasse um átomo sequer de seu corpo.

Sabazius acompanhara o interrogatório de Hiroshima dizendo quando o demônio mentia, um de seus valiosos talentos, por isso ao sair da instalação, Mustang e Chernobyl viram em seus olhos que as informações não a aliviaram, mas sim eram o início de algo pior.

Hitoshima encarou a tempestade que se formava com a promessa de chuva que não se cumprira até então. Fruto de seus poderes, inconscientemente criada graças a toda aquela tensão, descarregou um relâmpago que cortou o céu, seguido de um trovão que fez a terra tremer. Sabia o que tinha de ser feito, mesmo que o preço fosse a morte.

– Voltaremos a Motora. Mustang, por favor prepare o V8 para nosso retorno. Sabazius, assuma meu lugar durante minha ausência, e Chernobyl, tenho um último pedido a você: Vá na frente e prepare o Domo dos Relâmpagos.

Ao ouvir o pedido o garoto correu imediatamente, sumindo no horizonte. O V8 parou e os dois subiram sem questionamentos. Antes de seguir rumo a Motora, Mustang pediu ao espírito que reforçasse o motor e após isso, pisou no acelerador como sabia ser a vontade de sua soberana.

Cem, o ponteiro continuou a se mover enquanto Hiroshima evitava pensar nas últimas palavras de Amon.

Cento e trinta, Sabazius fazia com que os desenhos em sua mão se movessem, providenciando magicamente o que era necessário para atender ao pedido de sua Lady.

Cento e cinqüenta, Mustang procurou em sua mente uma música adequada a aquela situação

Cento e oitenta, o isolamento que deixava o V8 em silêncio foi interrompido por alguns acordes.

Quando o ponteiro marcou duzentos, os alto-falantes enfim começaram a descarregar o som que Mustang conjurara, um grito começou como cantoria e quando o ponteiro bateu em seu limite, duzentos e vinte, foram gritadas as palavras Highway to Hell.

Duzentos e cinquenta, seria isso que os números mostrariam se continuassem após o ponteiro quebrar a haste que o segurava. Hiroshima tinha um encontro marcado com o doutor.

Com o advento do apocalipse a questão energética era vital para definir quais cidades conseguiriam sobreviver e se manter, sem sucumbir perante as dificuldades do novo mundo. Hiroshima, à frente desse problema, projetou o Domo dos Relâmpagos, capaz de capturar e armazená-los garantindo poderio energético e militar para Motora. Quando o projeto estava em fase final de construção resolveram que deveriam nomear a inteligência artificial que o controlaria. Escolheram como nome, Zeus.

Sempre que as reservas ficavam abaixo do nível médio, Hiroshima saia ao ar livre, seus olhos violeta faiscavam por alguns segundos e uma tempestade de raios se anunciava. Mas os relâmpagos não serviam apenas como arma e fonte de energia, eram também a forma mais veloz de locomoção naquele novo mundo. Cavalgar um raio era receber uma descarga que desintegrava o viajante, movendo-o pela Terra na velocidade da Luz. Um transporte imediato.

De posse das coordenadas fornecidas por Amon e garantidas por Sabazius, bastava aquecer o Domo, programar Zeus e lançar o raio como ponte para o destino.

Cada relâmpago transportava uma pessoa, mas, ainda em fase de testes, apenas Hiroshima se arriscava a usá-lo. Nem mesmo Chernobyl ainda era capaz de fazer uma viagem segura. Mas para Hiroshima era o suficiente, ela deixaria seus servos no cuidado da cidade instruídos para prosseguir em seus avanços e melhorias. Se alguém tivesse de morrer nessa busca, seria apenas ela.

– Dê o comando a Zeus, Chernobyl!

Mustang estava ao lado do garoto, junto a Sabazius. Ambos reprovavam aquela loucura, mas seria impossível dissuadir Hiroshima de fazer aquilo sozinha. Ela contava com o fator surpresa, do contrário o Doutor poderia desaparecer novamente com seu irmão. Temiam pela segurança dela e por esse mesmo motivo não aguardaram que Zeus terminasse a operação, saindo sem que ela visse, desobedecendo as suas ordens.

– Tudo pronto. – Avisou Chernobyl

– Então lance-o!

O mecanismo foi ativado e com o ribombar de um trovão a plataforma desapareceu momentaneamente em um clarão cegante. Quando recuperou a visão, ela não estava mais lá.

Hiroshima demorou um pouco para se recuperar do enjôo da viagem, apenas o conhecimento profundo que tinha da matéria foi capaz de reintegrá-la novamente, ainda era arriscado viajar daquela forma. Sob seus pés a areia vitrificara-se com o choque, ela estava no deserto a menos de uma milha da instalação do Projeto Manhattan.

Caminhou e não demorou a chegar próximo à casa feita em volta da entrada para as instalações subterrâneas. O solo era rico em radiação e por isso jamais conseguira localizar seu irmão, ela interferia em seus sentidos especiais.

Amon tinha importância no projeto, era braço direito do Doutor Tannhauser e sua ausência fora percebida, com isso, as defesas da base estavam todas ligadas e os soldados atentos a qualquer invasão, mas Hiroshima não teria misericórdia de quem atrapalhasse seu objetivo. Ao chegar a cem metros da casa, foi desferido o primeiro ataque.

Uma cratera surgiu na areia, da largura de um campo de futebol revelando um platô de metal. Dele saíram centenas de soldados armados e protegidos por armaduras. Os olhos violeta faiscaram por um segundo e a primeira explosão aconteceu, um dos soldados teve seu cinto de granadas ativado e junto a ele levou um bom montante da força de batalha em uma reação em cascata.

Restavam pouco mais de setecentos homens, ela abaixou a cabeça em saudação à morte de cada um deles e se deslocou rompendo a barreira do som enquanto acertava a primeira fileira, a segunda e as seguintes. Tiros eram disparados inutilmente acertando apenas os outros soldados e diminuindo o efetivo da tropa.

 Seus punhos brilhavam em tons perolados causados por um efeito furta-cor. Com cada golpe, o soldado atingido explodia de dentro para fora devido à autocombustão. Era o suficiente para afetar ao menos dois próximos a ele. Seus pés apenas contribuíam para o efeito cascata com saltos e chutes desferidos contra os soldados, lançava-os longe atingindo vários outros na trajetória. Ao caírem no chão, explodiam como verdadeiros homens-bomba.

Não ligava para a vida daqueles infelizes, estava furiosa e fez com que os poucos que sobrevivessem desistissem de oferecer resistência. Corriam pelo medo da deusa assassina de punhos cintilantes, vinda dos céus que desferia sua fúria contra as atrocidades que eram feitas dentro da instalação. O efeito psicológico se espalhou rápido, mesmo pelas fileiras que ainda estavam lá dentro.

Um dos sobreviventes estava sem as duas pernas, esvaindo-se em sangue e morreria em questão de minutos. Hiroshima levantou o corpo moribundo pelo colarinho e lhe ofereceu:

– Me diga onde está o doutor Tannhauser e o oriental que ele mantém preso e você viverá para testemunhar minha compaixão.

O soldado decidiu que não valia morrer pelo patrão e contou a ela que ambos estavam no vigésimo andar subsolo. As pernas do homem cresceram novamente como por mágica e ele agradeceu a aquela deusa por uma segunda chance. Correu sem olhar para trás contando todas as bênçãos de sua vida.

Seguindo pelo platô chegou a um galpão com tamanho suficiente para fazer com que alguns helicópteros pudessem voar livremente e disparar contra ela toda sorte de armamentos. Os calibres eram diversos, .30, .50, munição de urânio desativado, capaz de atravessar até blindagem, ou explosiva. Mas nada era capaz de feri-la.

Com um pulo novamente ela quebrou a barreira do som, chocando seu corpo diretamente contra o primeiro helicóptero. Seus punhos cintilaram e um após o outro eles foram destruídos sem que Hiroshima sequer suasse. Um último helicóptero subiu desgovernado contra o teto do imenso galpão e explodiu espalhando fogo para todos os lados, o piloto pulara dele sem sequer ativar o para quedas. Morreu instantaneamente ao se chocar com o chão de metal sólido.

Antes que Hiroshima se aproximasse, o elevador foi recolhido e uma comporta de aço maciço se fechou no lugar dele. Os olhos faiscaram ainda mais de raiva, com um golpe atravessou os quarenta centímetros de aço rasgando-o como se fosse feito de papel e assim pulou para a centena de metros que separavam o próximo andar.

Enfrentou tanques e morteiros, bombas de vários quilotons detonadas em seu rosto e inúmeros artefatos de guerra, mas nada impediu que chegasse enfim ao vigésimo andar subsolo, onde Tannhauser aos berros xingava os soldados que se recusavam a enfrentar a vingança dos céus. Quatro demônios ainda tentaram protegê-lo, Cimejes, Zagan, Hagenith e Malphas, mas tal qual Amon, sucumbiram à dor causada pela espada Tsar e imploraram pela morte.

– Então você está vivo. Não fez mal o bastante a nós quando crianças? – Hiroshima embainhou novamente a Espada Tsar após derrubar os quatro demônios.

O Doutor encarava Lady Hiroshima com ódio e temor por aquele feito, não avaliara que ela seria capaz de resistir a todos aqueles ataques sem sofrer um arranhão. Não devia fugir da agenda de seu mestre, Azazel, mas não morreria ali para aquela aberração.

– Você quer o seu irmão? Então tome o seu irmão! – Socou uma caixa de vidro que protegia um botão vermelho no painel.

Uma sirene começou a tocar e em seguida surgiu o som de um elevador em alta velocidade atrás de Tannhauser. A parede se abriu e dela saiu Nagasaki. Mas aquele não era seu irmão, o olhar de ódio indicava uma criatura quase irracional que sofrera mais do que qualquer outra podia suportar sem perder a sanidade. Hiroshima ficou imóvel pela surpresa e foi atingida por um único golpe de espada que atravessou seu corpo.

Pela primeira vez algo conseguira feri-la desde sua infância, pela primeira vez algo conseguira ferir não apenas seu corpo, mas também seu espírito. Nagasaki estava perdido e a vida não valia mais a pena. Caiu de joelhos.

Tannhauser gargalhava sua vitória, comemorava sua genialidade e a sua maior criação. As lágrimas da derrota de Hiroshima atrapalharam a visão e ela pensou ver Nagasaki pedindo por ajuda, mas a mente dele não estava ali. Apenas um braço.

A visão ficou turva e ela fechou os olhos expandindo sua consciência intuitivamente. Apenas o braço pertencia a seu irmão, de alguma forma, mágica ou tecnológica, o doutor conseguira clonar o resto do corpo criando aquela criatura, mas sem conseguir reproduzir o milagre que era a existência deles.

Hiroshima enxugou os olhos e viu que seu irmão também chorava, ouviu um disparo atrás de si e lá estavam Sabazius e Mustang, aturdidos com a visão daquela criatura.

A batalha demorou horas, andar após andar, sem que ela percebesse. Tempo suficiente para que Mustang e Sabazius partissem de Motora no V8 experimental capaz de velocidades impressionantes. Hiroshima não percebera a passagem do tempo por estar furiosa, por não sentir cansaço ou remorso a cada morte, mas eram todos aqueles passos para um inevitável momento: Confrontar a verdade bem em frente aos seus olhos.

– Ele está pedindo para que você o mate, que elimine essa criatura que mantém os pedaços de seu corpo separados – Sabazius estava completamente incrédulo por testemunhar aquela atrocidade, mas o que disse foi o bastante para desencadear o que aconteceu em seguida.

Explosões coroam a fúria. Vociferação e berros são o som do ódio.  Agressão é a forma mais clara de demonstrar a raiva. Todos, sentimentos oriundos de apenas um que acompanha a humanidade por incontáveis eras. O caos que a fúria causa, muitas vezes perdido na confusão do ódio ou na garganta engasgada da raiva são tomados pelo homem comum como o mais terrível dos sentimentos.

Tudo isso é como um quadro do qual se está próximo demais, vendo cores múltiplas e confusas, mas que ao se afastar o suficiente, se vê que ele é branco, vazio, nulo e infinito, como se revelara ser a genuína Ira.

O único pensamento que passava pela mente de Lady Hiroshima era a paz, a tranqüilidade de ter idéias tão claras e alinhadas, compreendendo a ordem oculta por trás do caos. Ao contrário do que imaginara os olhos não escurecem tudo quando a verdadeira Ira rompe cada partícula do ser, mas sim clareiam tudo em um oceano de infinitas possibilidades.

Azazel tremeu em seu trono sentindo cada pulso de energia que foi lançado naquela instalação.

Hiroshima, ciente de tudo a sua volta, percebeu que seu corpo brilhava e parecia se expandir, Sabazius tirou a espada do estômago de sua soberana e cortou o braço da criatura à frente dela, imóvel e já sem vida. Disse palavras que não foram ouvidas por ela enquanto olhava fixamente o doutor caído no chão tentando se erguer na parede oposta. Toda aquela sensação tomou seu corpo em uma onda gostosa e relaxante, fazendo com que fechasse seus olhos e abraçasse seus joelhos conforme flutuava no ar. A Ira era um sentimento familiar e acolhedor. Ela era a Ira.

Acordou horas depois deitada na areia ao lado de Sabazius e Mustang. Os dois estavam feridos gravemente com queimaduras terríveis pelo corpo. E um braço, o mesmo que pertencia a seu irmão, ao lado da espada que a perfurara. À sua volta estava um V8 com a lataria retorcida, como se tivesse sido atingido por um míssel ou algo semelhante. Mas onde estava a base?

Socorreu seus amigos ainda em paz, feliz e tranqüila. Com seus poderes regenerou aqueles ferimentos que teriam aniquilado humanos normais cujos corpos não se tornaram mais fortes com a convivência prolongada com uma entidade da radiação. Quando eles estavam fora de perigo, perguntou-lhes o que acontecera. Sabazius relatou ainda incrédulo por tudo que vira:

– Eu jamais concebi a Ira como algo belo. Terrível, mas ainda assim belo. Seu corpo cintilou tal qual uma pérola, tornando-se furta-cor como apenas eu vira seus punhos.  Energia pura pulsava diretamente de você e percebemos que você não ouvia nossas palavras. Subimos rapidamente e entramos no V8 conseguindo correr por várias milhas, mas mesmo assim não fomos capazes de escapar completamente do raio de ação do que aconteceu.

– E o que aconteceu? – Hiroshima ainda não compreendia.

– Olhe para trás e veja. O deserto está em chamas.

Ao longe labaredas subiam ao céu, no lugar do deserto onde antes estava a base. Seu corpo explodira abrindo um buraco colossal no meio da areia, do qual saiam gases em combustão continua. Quando tentou entender como seu corpo sobrevivera a aquilo e estava ali ao lado de seus amigos, relembrou de cada momento que precedeu a Ira. Sim, ela rompera seus limites e da mesma forma que nascera de uma explosão, renascera ainda mais forte de outra, semelhante a uma ave que conhecia de vários mitos antigos.

Levou os amigos até o V8 destruído e com apenas um sussurro para a matéria, ela a obedeceu e começou a se rearranjar. O metal rangeu retorcendo-se e tomando a forma do veículo de outrora. Mustang e Sabazius continuaram calados, tentando fazer com que suas mentes aceitassem aquela readequação da realidade. Subiram e aceleraram rumo a Motora.

Lady Hiroshima tomou o braço do irmão e conseguiu sentir ele vivo, tomou a espada Fukushima e a colocou ao lado de Tsar. Seus olhos ainda faiscavam com uma fagulha de esperança por saber que ele vivia espalhado pelo mundo em vários pedaços aprisionados a criaturas ainda mais nefastas que aquela.

Os alto-falantes começaram a espalhar a música onde podia se ouvir:

Hellraiser,
 In the thunder and heat

 
Hellraiser,
 Rock you back in your seat

 
Hellraiser,
 And I’ll make it come true

 
Hellraiser,
 I’ll put a spell on you

Uma missão terminara, mas outra maior começava. Azazel em seu trono distante sentiu temor por saber que a Ira de Hiroshima viria fatalmente em seu encalço e que talvez nem mesmo a união dos poderes dos outros seis Gregoraquinianos seria o bastante para salvá-lo.

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