Artigo publicado originalmente na revista “R.I.P. Read in Peace” nº 07 em Setembro de 2011
“Gehenna (Grego γέεννα), Gehinnom (Hebraico Rabínico: גהנום/גהנם) e Yiddish Gehinnam, são termos derivados de um local fora da antiga Jerusalém conhecido na Bíblia dos Hebreus como o Vale do Filho de Hinnom (Hebraico: גֵיא בֶן־הִנֹּם ou גיא בן-הינום); um dos dois principais vales circundando a Velha cidade.”
* Traduzido do original em http://en.wikipedia.org/wiki/Gehenna
Muitas vezes me perguntei como eram criados os mundos de fantasia, talvez você também tenha feito essa pergunta, seja para outros gêneros literários, como o de ficção científica, o consagrado “medieval fantástico”, ou até mesmo o “cyber punk”.
Eu era apenas um garoto nessa época e não sabia da missa a metade. Acreditava que era fruto de genialidade e tudo resultado de uma tarefa Hercúlea, o que mostra que eu estava com os pensamentos no caminho certo.
Não fui preciso quanto à genialidade. Mas se tratando da tarefa, malditas palavras, podiam ter me enganado um pouco mais: Hercúleo é pouco. Como falamos de esforço de divindades gregas, cabe aqui mencionar Atlas, o mesmo que carrega o mundo em suas costas.
Percebi com o tempo que escrever demandava, em primeiro plano, duas coisas que eu não tive sorte de ter como talentos naturais, esforço e disciplina. Criatividade? É um artigo supervalorizado, mas sem o qual nada acontece.
Nada em minha vida é fruto de milagre, não sei se isso é uma benção ou maldição (depende do ponto de vista), mas aprendi com essa conclusão que eu precisava dominar a arte da lapidação de rochas, aparando cada aresta de forma precisa para que verdadeiras joias surgissem e, a primeira joia a lapidar era meu esforço e minha disciplina.
A essa altura talvez você pergunte “e eu com isso?” ou mesmo “que cacete é Gehenah então?”, e para isso eu peço calma, um pouco mais de floreio me é permitido quando os caracteres não estão limitados a conta gotas.
Com esse intuito, o de lapidar meu esforço e disciplina, em uma bela noite de insônia eu abri o laptop, carreguei a página do Axis Draco e acessei sua interface administrativa por treino e costume. Não tinha muitas ideias em mente e logo escolhi uma imagem em meus arquivos, escrevi um título para uma nova postagem e encarei aquela tela em branco com linhas a me aguardar.
Provavelmente demorou mais de quinze minutos entre um zapear e outro na mente até que eu percebi que ainda não tinha escrito uma letra sequer. Pensei em escrever conto para um de meus mundos, alternei o foco entre cada um deles, mas nada conseguia ser produzido.
Falo de mundos, pois criei vários, talvez até mais do que seria sadio para uma pessoa, se é que existe esse limite. Com o passar do tempo percebi que vários deles eram um só, mas em tempos diferentes ou em uma geografia distante. Foi a minha fase de aglutinação, onde de quatro ou cinco, sobrava apenas um novo mundo de maior complexidade e beleza.
Gehenah não foi assim.
Encarava aquela tela com uma sensação quase claustrofóbica, passei pela raiva, esbocei algumas linhas com um objetivo e nada. Minha disciplina nesse momento estava em permanecer ali até que algo surgisse, um milagre acontecesse.
Lembram o que eu disse antes sobre milagres em minha vida? Exatamente, não aconteceu. Eu simplesmente apaguei a imagem, o título e todas as intenções de escrever qualquer coisa. Posso dizer que alcancei um estado zen, ou talvez sem: sem criatividade, sem método nem alternativas.
Respirei fundo e comecei a digitar, os dedos tocavam as teclas e as primeiras letras apareceram, seguiram formando palavras e períodos a esmo, sem um direcionamento ou mesmo foco, apenas um exercício quase inconsciente de não pensar com a mente, mas sim esvaziando um reservatório que eu nunca tinha acessado.
Pouco mais de uma hora depois o ponto final é dado. Percebo o que fiz e não consigo acreditar em um primeiro momento, é estranho demais para ser verdade, parece até um milagre.
No entanto aconteceu. Não um milagre, mas assim nasceu o conto “Cutelo de Prata e a questão de Dandara” em um mundo não criado, não pensado ou concebido anteriormente, sem regras ou mesmo delimitações. Cada linha escrita foi dando forma a esse lugar, a essa realidade sem que fosse o objetivo. O conto foi recortado e colado em um arquivo de Word, salvo e engavetado.
Parece estranho, mas muitos contos acontecem assim, sem querer, mais bizarro nesse momento foi a ausência de vontade de escrever um, apenas a vontade de escrever. Certamente você pode pensar que ainda mais bizarro é enterrar algo para que possa florescer, descansar e encorpar. E não, não estamos falando de bebidas que demandam envelhecimento.
E Gehenah? Estamos quase lá, aproveite a paisagem antes de chegar ao destino, às vezes ela vale muito mais a pena.
Algum tempo depois a Editora Estronho anunciou a antologia VII Demônios, não apenas uma antologia, mas sete. Cada uma inspirada em um dos pecados capitais descritos originalmente por Evágrio de Ponto, um monge cristão, depois modificados pelo Papa Gregório I e por fim consagrados por São Tomás de Aquino na forma que conhecemos.
A estes mesmos pecados foram posteriormente “presenteados” sete demônios por Peter Binsfeld, um demonologista e padre medieval. De posse dessas informações que já eram de meu conhecimento, li a proposta da Editora com essas antologias e tive uma daquelas fantásticas ideias de jerico. Não, não é Jericó, a cidade cujas muralhas foram destruídas pelas trombetas de um anjo, mas sim o dito popular que empresta nome ao asno, ou jumento.
Sim, a concepção foi a de escrever para cada uma dessas antologias, anunciadas com o mínimo de dez mil caracteres e o máximo de vinte e quatro mil, totalizavam de setenta a cento e sessenta e oito mil caracteres que seriam trabalhados.
Tudo bem, sete contos não matam ninguém. Mas e a visão foi apenas essa? Não, para engrossar o caldo resolvi que seriam sete contos em um mesmo mundo, dessa vez um novo, criado exclusivamente para abarcar esta heptaempreitada. Como tempero, pois pimenta no olho dos outros é refresco, todos eles deveriam estar interligados, com referências um aos outros sem que no entanto fosse necessário a leitura de outro conto para a compreensão de algum deles.
Pois é, tal qual uma ideia de jerico, ela era amalucada, e do jerico (o asno) eu tive que extrair seus dois atributos mais importantes: teimosia e força.
E assim começa de fato a gênese de Gehenah.
Quando inicie os preparativos para essa jornada da escrita, separei uma dúzia de links e mais de dez livros, todos como referência, auxílio e apoio para o processo bizarro que é costumeiramente chamado de “wordlbuilding”.
Mas o que é o Worldbuilding?
Seguindo sua tradução ao pé da letra, é a construção de um mundo, de suas características, história, vida, fauna, geografia entre as muitas outras necessidades que surgem com essa tentativa.
É ainda, toda a estrutura criada de forma objetiva para possibilitar uma narrativa cujas informações não sejam conflitantes dentro do que quer que você escreva. Sem que a princesa comece a história com olhos verdes e termine com eles azuis, ou mesmo uma viagem que alguém demorou vinte dias a cavalo, seja feita em uma semana a pé.
Worldbuilding é uma preocupação especial com o pano de fundo da história, seja ela criada unicamente baseada em conceitos abstratos ou mesmo inspirada em uma geografia certa, ou um período histórico. Essa preocupação pode ser intensa e muitas vezes toma mais tempo para ser produzida que de fato a escrita.
Novamente estava diante do notebook portando apenas vontade, mas sem ideias para tocá-la adiante. Foi o momento de agir como um coveiro e desenterrar o “Cutelo de Prata”. Lá estava o mundo que eu iria utilizar para cada um dos contos, para cada uma dessas amalucadas tentativas de conseguir publicar meus escritos. Mas se você se lembra do que eu escrevi anteriormente, era apenas um conto, não a descrição precisa de um mundo.
Portado de vontade e disciplina, chegara o momento de fazer valer o esforço. Comecei a enumerar fatores que pudessem me ajudar a construir tal mundo, fossem eles literários, gráficos, musicais, cinematográficos ou de qualquer outro meio de expressão artística. Acreditem, deu trabalho.
O primeiro passo foi reler aquele o já escrito e perceber que ele realmente não era um milagre. Estava truncado, mal escrito, falho e em muitas vezes incompreensível. Percebi que ele fazia referências demais a coisas do mundo que ainda não tinham sido criadas, logo, eu precisava criá-las primeiro para poder arrumar aquela bagunça toda.
O segundo passo foi ser honesto comigo, perguntar o que eu queria escrever, como seria feito e qual era a carga desejada para essa construção. Responder a isso abriu as portas certas e conseguiu direcionar minhas pesquisas, estudos e leituras.
A primeira referência a surgir foi a série televisiva Supernatural, de onde eu já extraíra um conceito (unindo-o a outros) para criar uma arma descrita no conto Oricvolver. Dessa vez o que extraí foi a atmosfera sobrenatural, um mundo onde coisas estranhas acontecem frequentemente e quase sempre não são para o bem da humanidade.
Pela saga dos irmãos Winchester consegui vencer algumas amarradas de apresentar demônios dessa ou daquela forma, eram certos limites com a “fôrma” consagrada pelos estudos pelo assunto feitos por quase duas décadas de minha vida. Desapego foi a palavra correta para aquele momento
Considerei boa a referência, mas vazia e vaga. Embora a série tenha seus momentos altos, no geral ela cai no lugar comum de uma história que não pode ser explorada a fundo, apenas no decorrer de uma temporada inteira podemos ver as reais tramas, chegara o momento de procurar algo mais sólido.
A referência seguinte foi literária, nada mais que o mestre Howard Phillips Lovecraft (e se você somente o reconheceu pelo sobrenome, tome vergonha na cara e vá ler uma de suas obras). Reli Azathoth, The Colour Out of Space, Under the Pyramids e tantos outros contos dos quais absorvi a criação atmosférica, a descrição, mesmo que velada, de entidades cósmicas supranaturais e, claro, o terror.
Não desejava dar a tônica única do Terror nos sete contos, mas conforme o mundo no qual eles se ambientavam era construído tornou-se inegável a constatação desse fator ser a constante e não uma variável. Como seria diferente se aos poucos eu via que cada lugar era se não mais, tão inóspito quanto o anterior? E segui reunindo os fragmentos para essa construção.
A terceira referência foi uma música, apenas uma canção de Marilyn Manson de nome “Four Rusted Horses” cujo título que me fez indagar sobre como seria um mundo no qual os cavalos, dos quatro cavaleiros do apocalipse, estivessem enferrujados. Afinal, o que teria feito com que eles estivessem ali largados ao sabor do tempo?
Entendam, a referência musical sozinha embora seja bela e tenha em sua si o clima perfeito, não fez muita coisa, ela serviu apenas como base para uma indagação que me fez sacar a bíblia e reler Apocalipse 6: 2-8. Entendi que eu estava falando de um lugar onde o juízo final já tinha acontecido e nele não restaram histórias felizes para contar.
De posse dessas três referências eu já tinha um esqueleto, uma armação inicial onde poderia começar a colocar penduricalhos e a traçar linhas de conexão entre eles, criando assim a estrutura necessária para dar lógica ao conto do Cutelo de Prata. Logo em seguida eu o reescrevi e tudo começou a fazer mais sentido.
Casa arrumada. Vamos aos próximos detalhes. Mais e mais referências, mais e mais inspirações. Quando reli o Cutelo na mesma hora me lembrei de um conto (do escritor Jacques Barcia) lido pouco tempo antes, “Salvaging Gods” publicado na Clarkesworld Magazine e percebi nele a atmosfera New Weird com a qual o Cutelo reverberava. Aquele lugar com fatos que aos nossos olhos seriam surreais, mas que faziam completo senso para seus personagens.
Reli “Salvaging Gods” e com isso ficou claro que o ambiente rascunhando era dotado de suas próprias leis e regras, muitas vezes, diferentes das com as quais vivemos. Tomar ciência das duas próximas referências aconteceu naturalmente, eram uma sequencia lógica. O filme “O Livro de Eli”, onde um peregrino faz sua jornada por um mundo pós-apocalíptico totalmente distópico com um propósito inquebrantável e o jogo Fallout, ambientado em outro lugar onde nada de bom pode acontecer após uma guerra nuclear.
Do livro de Eli eu fiz rapidamente um pulo para Waterworld e Mad Max. Três mundos cinematográficos explorados com seus méritos e deméritos, onde a expressão “desolação” fazia todo sentido ao se analisar a população ou mesmo o cenário.
Eram muitas referências, tantas que eu estava perdido e para me achar eu tive que dar um passo de fé e afundar nesse abismo da dispersão. Juntar mitologia greco-romana, hindu, nórdica, celto-druídica, à cristã com sua escatologia? Oh yeah baby, é disso que eu estava falando!
Os sete demônios seriam reais, não apenas uma construção psicológica ou imagética que ganhou força, mas sim uma releitura de vários textos clássicos do cristianismo ou do judaísmo sefardita que transformava pesadelos em uma realidade com a qual seria necessário conviver.
Com o fato dos demônios definido chegava o momento de ajustar a cosmologia e cosmogonia. Não confundir as duas, por favor, enquanto a “gonia” define a origem do universo através de seus mitos, em mundos fantásticos a “logia” abrange a descrição do mesmo, especialmente quando está em questão esquemas de planos e dimensões.
A esses dois fatores eu tive de adicionar um terceiro de mesma importância, a teogonia. O prefixo “teo” refere-se a deuses e por consequência o que eu tive de esboçar foi a origem das divindades, demônios, entidades e demais criaturas que faziam parte daquele esquema cósmico.
Se você lembra que eu falei de juntar um monte de mitologia no mesmo caldeirão, deve perceber que nesse passo eu tive de lidar com muitos problemas, entre eles o principal sendo o da hierarquia, afinal, qual mitologia (ou religião, se você assim preferir) seria a correta e verdadeira? Eu tive de criar uma nova.
Não, não é algo a se pregar por aí nem a ser dito em voz alta pois o risco de parecer um louco é iminente, mas com a estrutura de religião somada à teogonia, cosmologia e cosmogonia, consegui fechar todos os detalhes necessários para dizer que o mundo enfim funcionaria de forma redonda.
Mais uma vez, não. Não pense que debrucei sobre cada mitologia e religião pesquisando indefinidamente e amarrando todas as pontas que ficavam soltas nessa colcha de retalhos, o que fiz foi definir uma escala de acontecimentos e importâncias, conexões entre mitos e formas pelo qual o sincretismo ocorreria. Acreditem, sincretismo é uma forma bem eficiente de se lidar com mitos nessas situações. Logo, não esperem um trabalho de teologia que vá apresentar uma verdade inexorável.
E assim eu retornei para a origem da ideia, os sete demônios e toda a gênese judaico-cristã eram o que faltava para dar o último toque acre a esse prato. Só faltava então começar a escrever os contos? Não, nomear esse mundo ainda era uma necessidade.
De forma similar a uma gestação, não o nomeei enquanto não veio à luz, apenas tive formulações de nomes, listas enormes de variações e concepções que podiam ser escolhidas quando enfim ele desse seu primeiro berro.
E sim, agora só faltava escrever cada um dos seis contos que restaram e o ponto de partida de todos eles foi o Cutelo. Grande Cutelo, sujeito simples, aquele cara que não pensa muito, não tem grandes ambições e simplesmente continua sua vida com a simplicidade de um dia após o outro.
Tracei o plano para os contos, risquei algumas informações básicas sobre o mundo apenas para ter como ponto de partida e com tudo em mente escrevi as primeiras linhas do último conto, “Lady Hiroshima, a Gênese”. Não foi por tentativa de fazer ser poético que o último fosse na verdade o primeiro, mas sim o desejo de que ele fosse o último ato onde a palavra IRA, pecado que ele carregaria, fosse expressa da melhor forma que eu pudesse conceber.
Após essas primeiras linhas veio ao mundo “O obsessor no caminho ígneo do Bodisatva”, seguido de “Banquete de maná e oração à unificação”. Os dois foram escritos quase de forma paralela e neles foram utilizados pela primeira vez os preceitos do mundo ainda sem nome:
- Não seria um mundo legal de se viver.
- O apocalipse não apenas já aconteceu, mas também trouxe consigo coisa pior;
- O mundo dos demônios fundiu-se com o a Terra mudando-a completamente e incluindo nisso a Mortalha que cobre o Sol.
- Maniqueísmo é regra inicial, o bem perdeu a batalha e o mal impera através dos sete demônios que controlam o mundo.
- Tecnologias foram perdidas e a magia ressurgiu com força para dar algum alívio à humanidade (e mais poder aos demônios).
- Outras tecnologias foram criadas em comunhão com a magia fazendo com que o paradigma de realidade mudasse.
- O Inferno apenas começou…
Com esses preceitos, os dois contos foram concluídos e entregues, personagens criados começaram a mostrar sua verdadeira voz e eu pude descansar por algum tempo já que em seguida teria de entregar o Cutelo, e ele já estava quase pronto.
Trabalhei então outros aspectos do mundo, descrevi melhor algumas situações e fatos que serviriam de base para os próximos contos e justificariam o que foi escrito nos anteriores e então dei mais retoques no que texto seria enviado para Ira.
Após as últimas marteladas, finalizei “Cutelo de Prata e a questão de Dandara” eu pulei para “Axis Mundi, a herança de Simha”, ciente de que parte importante da mitologia construída estava sendo escrita de forma objetiva e concreta, eliminando a possibilidade de mudar por qualquer motivo.
Funcionou bem, algumas ideias tidas no meio do caminho se saíram ainda melhor do que eu imaginava e os poucos buracos encontrados na estrutura do mundo foram preenchidos quando tomei coragem e decidi que mesmo que, a ideia daquele no momento não fosse a mais agradável, era perfeita.
Estavam vencidos Inveja, Gula, Luxúria e Soberba e talvez esses anúncios tenham me feito entrar na atmosfera do que viria a seguir: Preguiça.
Procrastinar, a desculpa da maioria dos escritores é na realidade parte integrante da religião universal de escrever, que aguarda o acontecimento da conjunção planetária propícia junto ao ritmo telúrico correto para que algo seja esboçado.
E mais alguns golpes foram dados nas pedras. Lapidando as características necessárias do escritor e fazendo com que então nascesse “Bastardos, duas gatas e um V8 fumegante” como uma real vitória sobre a Preguiça e a compreensão sobre a justa medida do que é esforço.
Quando menos percebi, eu já estava de frente ao sexto demônio, as trilhas sonoras dos outros contos já tinham sido formadas em minha mente e eu olhei novamente para essas referências, ouvi “Opening The Gates of Hell” de Wumpscut e sabia que o mundo sem nome já se movia sozinho, absorvendo as referências de forma automática sem que eu sequer percebesse, agindo exatamente como um buraco negro fazia. Ora, estava bem próximo da Avareza.
Esquecer de Therion? Um erro explicável. A maioria dos álbuns lançados desde Theli tem seu lugar cativo no meu dia a dia, no meu imaginário padrão e automático, logo não é estranho que eu visse tanto de tantas músicas expressadas em cada um dos contos e das características do mundo. Era mais uma referência a ser colecionada e catalogada, mas esboçá-la aqui criaria um sem número de páginas que inviabilizaria sua publicação.
A coleção estava enorme e me perder nela se tornara fácil, logo, decidi que as referências teriam de ser concluídas. Antes que eu resolvesse dar fim à temporada de inspirações me lembrei de Sucker Punch, de filmes de Wu-Xia e outras maravilhas cinematográficas com cegos obstinados, com mulheres de verdadeira força e só então as referências (ao menos conscientes) estavam encerradas.
Com o nascimento de “Segredos sob a égide de Mercúrio” tudo estava funcionando plenamente, sem que fosse necessária mais nenhuma incursão nessa realidade para entender “como as coisas funcionam”, meu papel de Demiurgo já estava definido e sagrado.
Faltava apenas um demônio, apenas um pecado e apenas um conto. O mesmo que eu iniciara quando o conceito para as sete antologias surgiu, aquele mesmo que eu trabalhara lentamente a cada pausa de deadline, com calma, dedicação, esforço e disciplina. Era a última joia da coroa, um diamante de fogo que eu cultivara e por fim chegava a hora de ceifa-lo.
Fiquei feliz e triste.
O sétimo conto foi aprovado, todas as deadlines e seus demônios foram vencidos, mas percebi que aquilo apenas criara um espaço vazio em meu interior. Faltava algo importante sem o qual eu não me daria por satisfeito: um nome.
Como descrevi acima, o processo de worldbuilding não foi feito de forma exclusiva e isolada, em muitas das vezes nem mesmo intencional. Ele aconteceu de forma orgânica e natural, como resultado de uma ideia de jerico, animal tão desprezado que me emprestou suas forças e teimosia para martelar incansavelmente a muralha até ceder.
Ora, um nome? O que não faltavam eram nomes. Foi só me lembrar do “Exorcismo de Emily Rose”, quando o padre pergunta à entidade dentro dela qual é seu nome e ela responde:
“Names? Names? One, two, three, four, five, six!”
Só então o sacerdote toma ciência do que está enfrentando e faz a pergunta certa:
“Ancient serpents, depart from this servant of God! Tell me your six names!”
Eu estava na mesma situação, mas ao invés de seis, eu lidava com sete demônios. Criaturas que eu chamei de “Gregoraquinianos” sintetizando o Papa Gregório e São Tomás de Aquino. Sete entidades malditas que transformaram o mundo em um lugar de desolação, destruição, amargura, profanação viva. Onde o fogo nunca se apagava.
O fogo que nunca se apaga, mencionado em Marcos 9:44-48. E então em Mateus 10:28 dele veio a resposta a esse nome:
“Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode precipitar a alma e o corpo na Geena.”
Encarei os sete demônios e eles me encararam de volta, seus sete nomes me foram ditos como se fossem soprados pelas serpentes ancestrais e eis que os sete nomes quando vertidos em letra se mostraram: GEHENAH!
Um local de pesadelos onde de fato a morte do corpo não é o pior dos temores, mas sim o descanso que alma alguma pode conquistar.
Um lugar onde o fogo que nunca se apaga está tão espalhado pela Terra incinerando a fé e a esperança que ninguém ousa sonhar.
Um inferno onde as pessoas desaprenderam a olhar para o alto em busca do fulgor do Sol, pois o mesmo encontra-se encoberto pela enorme Mortalha que transforma os dias ensolarados em eternas tardes cinzentas.
Um mundo onde eu jamais ousaria colocar o pé, principalmente por ter sido juiz e carrasco de tamanha realidade terrível. Assim, o abismo olhou de volta para mim e sussurrou suas palavras, percebi que muito ainda teria de ser feito, pois, de fato, o inferno apenas começara…
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