Segredos sobre a jornada mercurial

(avareza)

– A beleza do céu de hoje não é sequer sombra da de antigamente. Mal podemos ver as estrelas – Lunara suspirou enquanto pintava aquele céu cinzento com cores de sua imaginação, usou primeiro o verde de seus olhos, em seguida o tom raro acobreado de sua pele e por fim o loiro que tinha em algumas mechas de seu cabelo.

 – Os mais velhos falam de uma época na qual não se preocupavam tanto em vê-lo, ele estava sempre lá a esperar e ninguém iria tirá-lo dali.  Os que tentavam não podiam vê-lo bem de dia, com o Sol brilhando a ponto de machucar os olhos, nem de noite, se viviam nas cidades. Luzes artificiais iluminavam tanto que cobriam qualquer visão celeste. 

– Então como eles conseguiam ver o céu, senhorita? – Eli, o jovem protegido de Lunara, perguntava cheio da curiosidade típica dos jovens ouvindo histórias sobre um tempo distante.

– Se afastavam das cidades, iam para os lugares distantes onde não existiam luzes artificiais e só então podiam contemplar a verdadeira beleza do céu e das estrelas.

– Mas isso faz muito tempo?

– Sim Eli, foi antes de eu nascer. Ainda assim acredito que se eu visse o céu ele seria exatamente como eu o imagino. Sabe, às vezes eu o vejo em meus sonhos, quando tento acompanhar o Peregrino. – Olhou profundamente os olhos amendoados do garoto com pouco mais de dez anos, careca como era o costume para os aprendizes.

– Eu gostaria de vê-lo um dia também, senhorita.

– Você irá, quando completar seus doze anos e for um homem será aceito na Sinagoga Sinistra, e então poderá ver o teu Peregrino – Falava sobre o rito de passagem pelo qual ele passaria.

Lembrava muito bem de quão especial era aquele momento, ainda mais para ela que se tornara especial para toda a congregação, recebendo ensinamentos que completavam as lacunas dos mestres daqueles dias.

– Não o Peregrino, senhorita, o céu – Lunara entretida no próprio reflexo nos olhos do garoto se confundiu e riu, não sabia se via as esperanças dela refletidas nele, ou se eram a pureza com a qual ele via sua senhorita.

– Eu espero que um dia possamos juntos ver esse céu e que vençamos a Mortalha que cobre o mundo desde o dia que o Inferno e a Terra se juntaram. Mas agora me diga Eli, qual é seu recado?

– Os outros mestres a chamaram, disseram que encontraram o que você está procurando.

De volta à realidade, Lunara se via ao lado de Eli naquela terra inóspita que se tornara toda extensão conhecida do mundo, a mesma que clamara seu sangue e seus juramentos no seu décimo segundo aniversário para que os homens tivessem uma segunda chance.

– Se eles já sabem onde está, partirei logo. Sele Draunir e deixe-o pronto para a viagem.

– Sim, senhorita. Mas tem certeza? Dizem que ele é cruel.

– Não se preocupe, ele não o será com você. Apenas respeite-o e faça o que ele pedir.

Após a instrução, Eli saiu do aposento rumo à estrebaria descendo a escada da torre de Lunara sem fazer barulho, ela apreciava a leveza do garoto. Olhou uma última vez para o céu e em seguida para seu quarto, organizou o que levaria consigo em mala uma deixando-a para a viagem, só então seguiu para o tabernáculo.

– Lunara, nós encontramos enfim a informação que o Peregrino lhe disse nos sonhos. Temos a tradução do código e com ele você poderá encontrar o tomo.

O homem de olhos azuis e severos era Nial, um dos mestres da Sinagoga. Velho, com ralo cabelo branco, sentava-se no centro do meio círculo do tabernáculo como forma de prestígio por ser o mais antigo ali.

 – Sim, senhor. E onde irei encontrar esse tomo?

– O único lugar onde ele poderia estar, minha querida, em Novalexandria – O homem quebrou a expressão severa deixando escapar um breve sorriso sádico.

Ele não gostava de Lunara desde a ocasião no qual ela resistira a seus avanços afetivos, quando mais nova. Tal desgosto crescera ainda mais quando ela se tornou a mestra mais jovem a ser aceita e ele teve de passar a tratá-la como um igual.

– Novalexandrinos… – disse a palavra com apreensão, sabia da fama que eles tinham quanto a sua possessividade pelos tesouros que guardavam.

-… Será uma aventura interessante – e devolveu o sorriso a Nial fazendo com que ele cerrasse os dentes perante aquele desafio.

– Você chama de aventura um assunto da maior importância para nosso povo?

– Sim, é claro que é uma aventura, qualquer dia viajando fora dessas muralhas, seja qual for o objetivo, é uma. Não tome minhas palavras por levianas, são apenas palavras de uma pessoa jovem com muita disposição para encarar tais desafios. – Mencionar sua idade era sempre um golpe contra o velho e, embora o odiasse, precisava manter o ar de respeito por ele devido a sua posição na Sinagoga.

Nial franziu a teste em raiva, trocaram olhares faiscantes por alguns segundos até que Matrona, outra mestra e, a segunda mais velha, interrompeu aquela disputa com suas doces palavras.

– Como pretende ir, minha filha, devemos pedir ao xamã Elias que conjure os espíritos e faça o V8 se mover ou devo pedir a Belerofonte que sele um de nossos Árabes?

Os Árabes eram os três únicos cavalos que existiam, um reprodutor velho e duas éguas jovens demais para fazer uma viagem. Ainda, sob eles recaia toda a esperança de Belorofonte em recuperar a espécie que era considerada extinta.

– Nenhum dos dois, senhora. Os Árabes não têm condição de agüentar essa viagem, seria levá-los para a morte. Já o V8 se torna inviável para uma viagem sozinha, eu não sei dirigi-lo tão bem – Não podia confiar em máquinas movidas por espíritos se iria em direção aos Novalexandrinos, qualquer armadilha, e ela estaria realmente enrascada.

– E como pretende fazer essa viagem, espero que não esteja pensando em ir por suas próprias pernas – Ao contrário de Nial, a Matrona demonstrava preocupação, sem ironia ou sarcasmo.

– De forma alguma, Senhora, já pedi a Eli que sele Draunir.

– Como ousa libertar aquela vil e insidiosa criatura? Não pense que você irá fazer isso e ficaremos calados, aquele monstro matou dois de meus mais fiéis aprendizes – Nial enfurecera-se.

Lunara esperou que ele terminasse seu surto, o rosto do homem inchara quando ele perdera o controle e ficara vermelho de tão nervoso. Quando ele se acalmou e tomou por vencida a discussão, ela respondeu:

– Senhor Nial, não vou dizer que Draunir é uma criatura naturalmente boa, o fato de ele ser uma criatura do Inferno põe um ponto final sobre esse assunto. Agora, quanto a seus homens, eles mereceram a morte que tiveram por atentar contra uma vida por puro capricho gastronômico. Estou falando de uma criatura viva e inteligente que apenas se defendeu de dois imbecis que queriam forrar o estômago com, “carne exótica”, se não me falha a memória.

– Mesmo que… – Nial iniciaria outro discurso acalorado, quando Lunara elevou sua voz e o interrompeu.

– Eu não terminei de falar! Acho que esqueceu que eu não estou abaixo de você, e sim, sou sua igual. Trato-o por “senhor” por educação aos mais velhos, mas não tome essa educação como sinal de submissão, decidi levar Draunir pois confio em sua honra a ponto de ter enviado meu protegido, Eli, para selá-lo.

O velho engolia calado cada palavra, Lunara estava com a razão, não tinha como exigir nada dela, também mestra da Sinagoga. Com isso seu olhar odioso atravessou a sala enquanto bufava ardentemente pela ousadia dela em tratá-lo daquela forma, sem mais possibilidades de fazer sua vontade valer, vociferou:

– Você vai se arrepender disso, garota, sua impertinência e insubordinação não serão toleradas por esse conselho – Então Matrona o interrompeu:

– Basta, Nial! – conforme se levantara de sua cadeira a sala fora tomada por uma rápida rajada de vento, o sinal de que o velho tinha conseguido irritá-la.

– Se Lunara nos dá sua palavra de que a criatura é de confiança nós a tomamos por certa, é hora de repararmos o seu erro, não me lembro de ter sido permitido a tal criatura um julgamento justo antes de ser jogada naquela cela. Você tem agido impunemente sem levar em conta que isto é um conselho e que todas as vozes aqui são iguais. Se você se opõe a ela, votemos!

A votação favoreceu Lunara. Vencido, o velho saiu de sua poltrona em direção à porta seguido dos dois únicos mestres que ficaram ao seu lado na votação. Antes que chegasse à porta, Matrona lhe perguntou, com a mesma voz suave de outrora:

– Você não está se esquecendo de nada, Nial?

Ele parou, voltou-se a Lunara e jogou em sua direção uma pequena lasca de pedra com a esperança de que ela acertasse seu rosto, frustrado após ver a mulher pegar a pedra sem o menor esforço, abandonou o tabernáculo batendo a porta atrás de si.

– Receba então nossa benção, minha filha – Todos se levantaram e estenderam as mãos em direção à Matrona, que proferiu a benção:

“Possam os ancestrais verdejar teu caminho pelas entranhas do vale da morte,
 possa o teu
Peregrino protegê-la e abençoá-la com a coragem do leão e da águia,
 não terás medo do terror da noite nem da seta que voa na penumbra,

 nem da peste que anda na escuridão
nem da mortandade que assola ao meio do dia,
 mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti.”

Lunara agradeceu ao encantamento lançado e guardou a lasca de pedra em seu bolso, saudou aos mestres restantes e saiu do tabernaculo, ciente de que embora Nial fora vencido pelo conselho, ele não pararia ali em seus surtos de desmandes.

A jornada à sua frente só poderia ser feita com o auxílio e a fé no Peregrino.

Eli coçava a cabeça encabulado quando Lunara chegou, riram juntos, pois ele temera tanto Draunir e estava inteiro, sem nenhum dedo faltando, que era impossível não achar engraçada aquela situação. Repassou pela última vez os cuidados que deveria tomar com a ausência de sua tutora e se despediu com um abraço, recebendo então uma benção e um beijo em sua testa.

Após a saída de Eli ela tomou um longo banho quente temendo que não pudesse tomar outro tão cedo, arrumou-se e pegou a mochila já pronta. Desceu as escadas de seu aposento e passou pelo salão principal onde Nial conversava com seus dois amigos entre uma colherada e outra de sopa. Tentou passar rápido para evitar olhares, gracinhas ou provocações, sem sucesso:

-… Irá sozinha, pois ninguém a ama, nem mesmo aquele bastardo que ela toma como protegido. Ele apenas se apega a ela com medo de que eu exponha sua verdadeira história – A insidiosidade dele foi a gota d’água para Lunara.

Enquanto ele mantinha suas ameaças a ela, pouco importava, faltava ao homem coragem para tentar qualquer coisa, mas Eli era uma criança indefesa. Aquilo mexeu com suas entranhas e antes que ela percebesse, estava levantando Nial pelo pescoço:

– Um arranhão, uma queixa. Qualquer ato de agressão e eu esquecerei sua posição, arrancarei sua pele como a de uma raposa lhe deixando vivo, para sofrer pelo mal causado.

Nial sufocava com a força dos dedos de Lunara, sabia da diferença de idade entre eles, mas jamais esperaria tamanha força a ponto de erguê-lo mais de trinta centímetros do chão, como a um graveto. Os dois outros mestres tentaram em vão fazê-la soltar o amigo, a fúria cega apenas se esvaiu quando Matrona se aproximou:

– Vá, minha filha, não importa o que este homem velho e rancoroso tenha dito. Cuidarei pessoalmente de Eli e de sua segurança.

Lunara soltou Nial ao ouvir aquelas palavras, o velho caiu no chão igual a um saco de batatas, mal conseguindo se recompor daquele ataque surpresa. Ela atravessou o salão principal e agora estava segura de que nada aconteceria a Eli, pois o velho, embora fosse astuto e vingativo, prezava demais sua própria integridade, o que significa que ele temia Matrona.

 Chegou à estrebaria, um dos lugares mais bem cuidados da Sinagoga que indicavam a paixão de Belerofonte pelos eqüinos, passou pelos Árabes certificando-se de que estavam em melhores condições das quais chegaram e encontrou o responsável que sorriu ao vê-la se aproximar:

– Mestra Lunara. Quanta honra tê-la aqui.

– Não me chame de mestra Bel, temos quase a mesma idade. “Mestra” faz com que eu me sinta velha antes do tempo.

– É o costume em lidar com todos os mestres, automático.

– Tudo bem, mas quando estivermos apenas entre nós pode me chamar pelo meu nome, ficarei mais a vontade. E como está Draunir?

– Mes… Lunara, a força e a saúde dessa criatura são incríveis, mesmo após tanto tempo preso ele continua melhor que os Árabes que são bem tratados desde sua chegada.

Aquilo a contentava, sabia que se alguém cuidaria bem de qualquer animal parecido com um cavalo, seria Belerofonte, mal podia esperar para montá-lo e iniciar sua viagem.

– Ele é uma criatura magnífica, agradeço sua atenção e dedicação Bel, mas agora devo me apressar.

Despediu-se e seguiu para a última baia, onde encontrou Draunir contente pela primeira vez em tanto tempo. Oito patas fortes, pelagem negra e reluzente, dois pares de olhos ígneos e um sorriso malicioso que se abriu ao vê-la.

– Olá “Il Mulo”, você está bem melhor agora!

– Já pedi que não me chamasse assim – zombou – é claro que estou bem, Eli e Belerofonte foram atenciosos comigo, sequer imaginava que alguém poderia me tratar assim. Quanto a seu amigo, ele sequer se estranhou com meus hábitos alimentares.

Draunir podia parecer com um cavalo, ou melhor, com uma mula, por não ser tão alto e ter uma constituição robusta, mas no fim das contas ele era uma criatura do inferno, seus traços dissonantes dos outros eqüinos deixavam claro. Quanto à sua alimentação, era carnívoro, seus dentes afiados e pontudos deixavam isso bem claro.

– Então após um longo banquete, o lendário descendente de Sleipnir me dará a honra de cavalgá-lo? Não me levará para nenhuma armadilha?

 – Sem a menor sombra de dúvidas Lunara, só por sair daquela prisão e poder movimentar minhas patas novamente, lhe sou eternamente grato. Quanto a minha lealdade, acredite, você sobreviverá para conhecer.

Sorriu em retribuição, alisou o pelo macio e se lembrou da primeira vez que o vira em toda sua imponência, bem diferente de como ele estivera nos últimos tempos, sujo e machucado sendo maltratado na prisão.

– Então chega de conversa mole, temos um caminho longo a trilhar. – Queria sair daquelas muralhas o quanto antes.

– Posso saber para onde iremos?

– Claro, conto com sua velocidade lendária para que alcancemos Novalexandria em menos de uma semana. – O caminho durava mais de vinte dias no trote de um cavalo saudável qualquer.

– Então suba, coloquemos a conversa em dia ganhando um pouco de chão.

Lunara montou em Draunir, saíram da estrebaria se despedindo de Belerofonte em um galope moderado. Ao chegarem às muralhas de pedra a despedida foi de Eli que estava junto à Matrona. Passada a primeira centena de metros fora das muralhas, ele a alertou para que segurasse com força em suas rédeas.

Rapidamente ganharam velocidade, era incrível como ele se movia com aquelas oito patas, Lunara sentia pela primeira vez o prazer da alta velocidade, fixou-se naquela sensação por algumas horas sem que conversassem, sem que pensassem na dura tarefa que teriam adiante.

Eram apenas um com o vento.

Cavalgaram por quase um dia inteiro sem paradas e só fizeram a primeira a pedido de Lunara que não estava acostumada a uma viagem tão longa, montaram acampamento e sequer conversaram, pois ela dormira nos primeiros minutos.

Amanhecia, Lunara olhou para o céu e se lembrou que a última vez que olhara para ele estava a quilômetros de distância, em companhia de Eli e segura dentro das muralhas. Levantou-se assustada por ter baixado tanto a guarda, olhou em volta e não viu qualquer sinal de Draunir.

Se ele aproveitara seu sono e fugido, era tarde demais para pensar em procurá-lo. Começou a arrumar suas coisas preparando-se para o pior, encarar uma longe viagem até Novalexandria da forma que Matrona advertira-a de fazer, foi quando ouviu o galopar inconfundível da criatura ao longe.

Na planície que se encontravam, Draunir deixava um rastro de poeira por onde passava, trazia algo em sua boca, e de longe era possível definir apenas seus olhos, como quatro faróis ígneos lhe dando uma aparência assustadora, entendia o motivo pelo qual o chamavam de “Il Mulo”, ele era a perfeita semelhança de um terrível demônio das histórias antigas.

– Achei que tinha fugido. – Lunara disse aquilo fingindo certo desdém quando ouviu ele se aproximar.

– Fui caçar – falou com algo atrapalhando a boca – e trouxe isso para você.

Lunara ouviu o barulho de algo caindo no chão, pensou em manter o desdém por mais algum tempo, mas não resistiu, virou-se e viu ali a coxa de um javali ainda com sangue fresco. Draunir caçara para ele e para ela.

– Aposto que você não come carne de verdade há muito tempo, aceite isso como mais um gesto de minha gratidão.

Emocionada, aproximou-se de Draunir e abraçou-lhe pelo pescoço, não disse nada, mas ele sabia que ela era quem agradecia tanto a ele pelos muitos momentos de conversas que tiveram desde sua prisão, momentos esses no qual ele ensinou a ela canalizar e a usar sua verdadeira força, exatamente como fizera com Nial naquele momento de raiva.

– Lunara, nunca daria certo entre nós, anatomicamente falando, eu jamais poderia…

– Cale-se, seu sujo – Lunara chutou a perna dele e sentiu a dor de bater em algo sólido como granito, caiu no chão e começou a se contorcer de dor.

– Vamos, espero que não tenha quebrado nenhum osso. – Draunir disse, preocupado.

Lunara começou a fazer um barulho estranho, se contorcia arfando muito e a criatura tomou aquilo por um choro, talvez sua brincadeira tivesse sido muito pesada ou ela tivesse realmente quebrado algo, abaixou sua cabeça empurrando-a com o focinho e perguntou:

– Machucou muito Lunara? Ou minha brincadeira foi estúpida demais?

Mas não era esse o caso, Lunara estava passando mal de tanto rir, chorava de dor sim, mas ria ao mesmo tempo de sua idiotice em chutar a perna da criatura e da malícia dele.

– Anatomicamente – foi a única coisa que disse isso e voltou a se contorcer de tanto rir.

Após se recompor, agradeceu mais uma vez pela carne e a preparou enquanto terminava de apagar os rastros do acampamento, conversaram amistosamente com bem menos seriedade com a qual estavam acostumados naquela prisão.

Como Draunir disse, a carne era maravilhosa, ele concordou e disse que a preferia crua. Enfim se levantaram e deram continuidade à viagem com um peso a menos em seus ombros, agradeciam em silêncio a amizade que tinham.

O resto dos dias não foram tão generosos quanto às condições climáticas. Era incrível que com apenas alguns dias de viagem o clima pudesse mudar tanto, saíram da Sinagoga Sinistra, onde fazia calor, passaram por um deserto causticante e por fim chegaram à neve, com um frio terrível e inesperado.

Era o anoitecer do quinto dia, Lunara se perguntou se conseguiria completar a jornada, já que faltava tanto para chegar e ainda mais tanto para ser conquistado. Draunir a animou quando disse:

– Se continuarmos agora, chegaremos pelo amanhecer. Já consigo ver ao longe o obelisco de Novalexandria.

– Não sabia que você podia enxergar coisas tão longe, ainda mais com essa nevasca.

– Acredite em mim Lunara, são poucas as coisas que não posso ver com esses olhos, e menos ainda as que conseguem esconder algo de mim – deu a ela um olhar malicioso de cima a baixo, como faria um adolescente vendo aquele belo corpo escultural.

– Então vamos terminar isso logo.

Da mala que carregava, tirou uma túnica cinzenta belíssima, ficou nua na frente de Draunir e começou a se trocar:

– Não devo ter nada que você não tenha visto antes, não é mesmo?

 Após colocar a túnica que, mesmo sendo fina, era muito mais efetiva para protegê-la daquele frio, amarrou o cabelo e colocou nele uma pequena rede. Com o medalhão, que completou sua vestimenta, estava pronta para encontrar qualquer um como representante de assuntos oficiais da Sinagoga Sinistra.

– Uau, você tem classe – Draunir debochou.

– Sim, e aposto que isso você não tinha conseguido ver ainda – Montou novamente, e seguiram as últimas horas de viagem.

Draunir provou estar certo, na manhã seguinte ela já conseguia ver o Obelisco de Novalexandria, embora conhecesse os rumores, nunca estivera ali, e se espantou ao ver que tudo era um deserto de neve, uma imensidão branca sem fim.

– Você tem certeza que estamos no lugar certo?

– Sim, Lunara, e pelo visto essa é a sua primeira vez aqui.

Enquanto ela permanecia frustrada esperando piscar e ver a monumental cidade à sua frente, continuaram a galopar, chegando por fim ao Obelisco.  Draunir se aproximou o bastante dele e disse:

– Desejamos entrar na cidade de Novalexandria.

O Obelisco negro foi subitamente iluminado por uma luz azul que percorreu toda sua extensão, revelando nele desenhos entalhados que antes eram invisíveis aos olhos nus.

– Quem deseja entrar na cidade de Novalexandria? – a voz surgira vinda do Obelisco, era masculina e não muito forte, talvez fosse de um homem jovem.

– Lunara, da Sinagoga Sinistra. – Assim ela disse ao receber a indicação com a cabeça de sua montaria.

Mais uma vez a luz azul subiu pelo Obelisco, mas dessa vez deixou para trás uma pequena esfera na altura do rosto de Lunara, a esfera pareceu girar e Lunara percebeu que aquilo era um olho.

– Não temos assuntos com a Sinagoga Sinistra. Você não é bem-vinda aqui. Retire-se ou sofra as conseqüências. – A voz tornara-se menos amistosa, Lunara percebeu que realmente tinha motivos para desconfiar tanto dos Novalexandrinos.

– Vim em uma busca oficial da Sinagoga Sinistra, estou à procura de um tomo.

– Todos estão à procura de algum de nossos tesouros. Mas eles não estão disponíveis para nenhum não-Novalexandrino.  Retire-se, esse é o último aviso! – A voz não era mais a mesma, embora tivesse semelhança, agora era grossa e ameaçadora, fazendo com que Lunara suasse mesmo naquele frio.

– Não fiz essa viagem toda para voltar de mãos vazias, nem mesmo vim para cá sem ter nada a oferecer – colocou a mão na bolsa e a voz respondeu:

– Não faça movimentos bruscos, retire o que quer que seja de sua mochila lentamente. – E a voz transformara-se novamente na primeira voz ouvida.

Lunara obedeceu, tirou da mochila um pequeno livro de autoria de Matrona, um manual sobre o trato com plantas híbridas do inferno, desde pragas que se infestavam em minutos, até ervas que podiam trazer um morto de volta à vida.

– Este tomo foi escrito por Matrona, é um presente para as fileiras de Novalexandria se eu encontrar o que vim buscar aqui – O olho virou-se diretamente para o livro e ordenou que ele fosse aberto, provando ter algum conteúdo.

– Sua entrada foi autorizada. Seja bem-vinda à Novalexandria, a morada do saber.

 O Obelisco se apagou completamente, após alguns segundos a neve o chão coberto de neve começou a se levantar, revelando um enorme ancoradouro, aquela construção deixou Lunara boquiaberta, jamais vira tanta tecnologia em sua vida, quanto mais em uma porta.

Quando o som enfim cessou, a neve começou a derreter rapidamente revelando uma porta enorme de metal vermelho pelo calor. Poucos segundos depois, quando não restara neve no caminho, a porta expeliu vapor pela sua parte superior e o metal se tornou novamente cinzento. Outro barulho e finalmente a porta para Novalexandria se abria.

– Essa sua cara de besta, definitivamente, eu jamais tinha visto – Draunir riu enquanto Lunara ainda estava tentando absorver tudo que acontecera ali em uma fração de segundos.

Adentraram o ancoradouro e desceram por uma rampa que se estendia por mais de duzentos metros, por fim chegaram a uma segunda porta de aço.  Uma terceira se levantou quase 20 metros atrás deles e repentinamente o chão começou a descer, estavam em um dos inúmeros elevadores de carga rumo ao coração da cidade.

Lunara sentia que a velocidade da descida era incrivelmente rápida, mas ainda assim não parecia sentir qualquer efeito dela, apenas uma pequena sensação de desconforto no estômago como se estivesse em queda livre.

– Não se preocupe, não iremos cair e nos espatifar no chão – Draunir já estivera na cidade, embora jamais tivesse contado para Lunara.

 – Já vi que não é sua primeira vez aqui, certo?

– Acertou em cheio.

– E porque jamais me disse como seria a recepção ou mesmo essa maravilha tecnológica?

– E perder a sua cara de surpresa? Jamais!

Quando enfim pararam, quase dez minutos depois, foram recebidos com cordialidade, bem diferente do tratamento dado pela voz do Obelisco. Eram os guardas da cidade, e eles tinham a função de expulsar qualquer invasor, o chefe de segurança pediu desculpas pelo mal-entendido e levou Lunara diretamente para o Bibliotecario, o líder absoluto de Novalexandria.

– Lunara da Sinagoga Sinistra, deixe-me ver o volume que você traz em mãos – sem sequer se apresentar, o Bibliotecário avançou ao ver o tomo nas mãos de Lunara.

– Espere! Quem é você? – Ela entrou na defensiva afastando o homem.

– Eu? Oras, eu sou o Bibliotecário, deixe-me ver logo esse volume escrito pelas suaves mãos de Matrona. – O homem não parecia em nada com um líder absoluto de tamanha cidade.

– Seu nome, estamos em desvantagem aqui. – Saiu da postura defensiva e assumiu um tom agressivo, sabia que se o homem colocasse as mãos no livro, não teria garantia alguma de sair dali com o que viera procurar, tampouco de sair com vida.

– Oras, meu nome? Você pode me chamar de Mindlin, o importante não é meu nome, mas sim o livro que você carrega consigo. Vamos, me deixe vê-lo! – A semelhança dele com Nial era impressionante, e pela primeira vez ela percebeu a armadilha que o velho tentara armar para ela.

– Não, tudo a seu tempo – invocou a benção dada pela Matrona, e a rede de seu cabelo foi consumida pelas chamas em que se transformaram seu cabelo.

– Usando de magia em minha presença? – O homem estava completamente desequilibrado, avançou vorazmente rumo ao pescoço de Lunara, mas parecia ter se esquecido de Draunir, que por sua vez, mordeu-lhe a mão e nocauteou os dois guardas que estavam atrás armados com um coice.

– Solte minha mão sua criatura imbecil, solte ou irei mandar você de volta para a masmorra de onde você jamais deveria ter saído.

– Acalme-se Mindlin, irmão de Nial. Do contrário meu amigo irá jantar a “carne exótica” de seu braço.

Mindlin pareceu ser atingido por um golpe, acalmou-se instantaneamente como por mágica:

– Como vocês souberam? – perguntou abismado

– Que você é irmão de Nial?  Ou que foi você quem enviou para ele um livro sobre receitas exóticas para preparar uma montaria infernal e adquirir o poder de atravessar os mundos? Talvez você esteja falando na verdade da armadilha que seu irmão tentou preparar para mim, para que eu saísse definitivamente de seu caminho.

Lunara deduziu tudo rapidamente, lembrou-se do livro impecável que foi encontrado com os dois mortos por Draunir, da forma como Nial exerceu seu poder para que ninguém mais o visse, tratando-o como um diário pessoal.

Continuou a se lembrar, como se o próprio Peregrino estivesse falando em seu ouvido, de ter visto o livro nos aposentos de Nial quando lhe inquiriu sobre a prisão da criatura, do que leu aterrorizada naquele livro roubado momentaneamente por Eli sobre como sacrificar e absorver o poder natural de Draunir.

E por fim, lembrou-se da mancha negra no olho direito de Nial, partilhada por Mindlin e que deixava claro o parentesco entre os dois. O resto foi a pura dedução lógica dela.

– A armadilha que seu irmão pensou ser infalível contava com apenas uma falha, você sabia que se tentasse me matar eu iria queimar o livro e, que ele preferiria isso a entregar a você uma cópia dos preciosos estudos de Matrona, por isso me trouxe aqui pessoalmente, para certificar-se de que teria seu precioso livro antes que eu morresse – a labareda de seu cabelo se ergueu e Draunir soltou a mão do homem.

– Agora você tem apenas duas opções, Mindlin, mate-me e perca de vez esse livro, ou faça a troca exatamente como foi solicitado pela Sinagoga Sinistra. E não pense em me trair –levantou os braços e a chama que estava em sua cabeça direcionou-se para as mãos após o livro cair no chão – Esse coração ígneo permanecerá aqui até que eu esteja longe e a salvo.

Ela abaixou as mãos e a chama enfraqueceu se transformando em uma esfera alaranjada muito semelhante ao magma.

– Entregue-me o tomo que eu vim buscar – tirou a lasca de pedra da mochila e arremessou para ele – fique com o livro a você foi destinado. Mas se algo acontecer comigo, esse coração irá explodir, e acredite, sua perda será irreparável.

– O que me diz Mindlin?

– Qual é a garantia de que você não irá destruir meus tesouros por vingança?

– Ao contrário de você e seu irmão, eu fiz um juramento à terra de que eu lutaria para que a humanidade tivesse uma nova chance, essa é minha palavra e a minha honra. Portanto, se eu sair daqui em segurança, o coração dissipará e nada será perdido. Seria uma enorme perda para a humanidade perder o último reduto de sabedoria e conhecimento que pode construir um novo amanhã e devolver o nosso céu, mesmo que eu sabia que tal preciosidade está nas mãos de um homem mesquinho.

– De forma alguma, Senhorita Lunara. – Uma voz calma surgiu atrás dela.

– Peço desculpas pelo que Niaz fez aqui. – O homem passou por Lunara pacificamente, era muito mais velho que Mindlin, usava um par de óculos fino e andava auxiliado por uma bengala, parou de frente ao irmão de Nial.

– Niaz, você achou realmente que conseguiria me deixar afastado desse assunto?

– Senhor Mindlin…

– Sem mais, acompanhe os guardas.

Após o irmão de Nial ser levado pelos guardas, o homem reiterou suas desculpas mais algumas vezes, apresentou-se como o verdadeiro Mindlin, o Bibliotecário e disse que aquele que tentara se passar por ele era Niaz, de fato, irmão de Nial.

– Agora me diga senhorita Lunara, como poderia recompensá-la por esse desconforto causado por um de meus funcionários? Peço apenas que não peça pela vida dele, embora ele seja o homem mais avaro que conheci em vida, ele é o melhor tradutor de algumas línguas. Acredite, ele será devidamente punido pelo que fez.

Era sensível a diferença entre os dois, Lunara podia finalmente entender o porque daquele homem mesquinho não ter lhe convencido em momento algum de ser o Bibliotecário, já Mindlin sequer precisava se esforçar para que isso fosse percebido. Abriu os braços e recebeu de volta o coração ígneo, com isso retirava sua ameaça a aquele lugar.

– A única coisa que peço é o tomo a que vim buscar. Tenho um pequeno aprendiz me esperando de volta na Sinagoga e uma boa amiga, a mesma que escreveu esse livro, presente para o senhor – Entregou-lhe com reverência.

– Quanto a Niaz, apenas peço que não o deixe se comunicar com o irmão para avisar que o plano deles falhou, assim posso surpreendê-lo. Peço desculpas também por ter ameaçado sua cidade e todo o patrimônio construído.

Mindlin sorriu, aceitou as condições de Lunara e entregou o tomo que ela viera buscar, junto a ele, entregou seis outras obras, que disse serem complementos muito úteis. Convidou-a para ficar na cidade pelo resto do dia para que se alimentasse e descansasse para a viagem de volta.

Após alimentar-se foi guiada até um quarto enorme, onde lhe esperava Draunir, igualmente alimentado e satisfeito.

– Por que você não me avisou que aquele homem era uma fraude? – Disse com mais decepção na voz que raiva.

– Porque eu não sabia Lunara. Ou você acha que em minha estadia anterior aqui eu tive um tratamento desses?

Ela sabia que podia confiar em Draunir, tudo passara a fazer ainda mais sentido, Niaz provavelmente soube da criatura e avisou a Nial que planejara tudo. Antes que dormisse pela exaustão, ficou feliz em saber que tinha feito um amigo e frustrado vários planos de Nial, mal podia esperar para voltar à Sinagoga.

Na manhã seguinte foi levada de volta ao elevador por onde entrara em Novalexandria e ao chegar no andar de saída lá estava Mindlin ao lado de uma mulher:

– Mais uma vez quero pedir desculpas a você e à Sinagoga Sinistra em meu nome e em nome de Novalexandria, sei que esses livros serão úteis, principalmente pela importância que eles carregam.  Mesmoque não tenha lido-os inteiros, de folheá-los já deve ter percebido sua importância.

– Não há o que ser desculpado senhor. Mais uma vez agradeço a sua gentileza e hospitalidade e peço desculpas por qualquer problema que possamos ter causado – Reverenciou o homem em seguida montou em Draunir.

– E quanto aos livros, o que achou deles?

– São belos e se o senhor diz que serão úteis, acredito em sua palavra.

– Mas você sequer os folheou? – O homem estava incrédulo

– Sim senhor, folheei, mas como nunca consegui aprender a ler, não entendi nada do que está neles – Bem que Matrona tentara ensiná-la, mas jamais conseguira vencer a dislexia de Lunara.

– Ouviu isso Guita? – perguntou à mulher – Essa bela senhorita não sabe ler. Mas ouça, volte quando for de sua vontade e iremos ensiná-la o significado maravilhoso do registro das palavras e como interpretá-los, pois sei que, agora, sua missão é outra.

Lunara, em lágrimas, agradeceu a Mindlin, prometeu que voltaria oportunamente com Draunir e partiu de Novalexandria agradecendo ao Peregrino pela última vez, pois a voz dele, não mais sendo necessária, silenciara-se para sempre.

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